25.11.06

Canção do ser impossivelmente enamorado

Eis que compulsionado e afetado
Vejo-me impelido a sair da letargia auto-imposta
E a pôr-me em movimento
Pluri-direcional
Qualquer-direcional
A direção não importa

Em passos imaginados
Chego-me à porta da rua
Mas já não há rua alguma
Está tudo mudado desde a última vez
Em uma noite eterna tudo aconteceu
E a noite eterna foi apenas um instante


Procuro, desesperado, exasperado, esfacelado
Como criança assustada em quarto escuro
O colo de uma fada impossível
E, de qualquer forma, ao alcance das mãos trêmulas
Mãos que abraçam o mundo inteiro
Mas que são já incapazes de sentir a rua defronte


E eis que surge a possibilidade final (fatal?) da louca fuga
E vejo-me, então, a correr pelo cais do porto
Local caquético como minh’alma, degradante e degradada
Mas que, inconsciente, remete-me pr’além-mar
E sob efeito de tantas drogas não-experimentadas
Sento e sinto-me só


E calado regozijo-me com a dor cortante
Que, contudo, livra-me momentaneamente da tristeza
E os pombos que arrulham ao meu lado
São-me indiferentes como pedras
O porto segue sua vida nati-morta
Eu sigo a girar o mundo inteiro


Chega, então, a noite com seu pesar
E meu corpo solicita descanso biológico
A fadiga do dia me faz deitar
Na cama da qual há muito me não levanto
E na alucinação febril me não espanto
Com a fada graciosa que me vem velar


No sono profundo, vencido pelo corpo físico (tísico?), enfim sinto o alívio
E purificado me encontro com o eu que reprimo há tanto tempo
E na solidão absoluta de minha própria ausência
Em prantos reencontro Deus, o não-ser por excelência
E a fada, que com pena me velava,
Pela janela sai e vai-se embora

17.11.06

Sempre amores. Jamais amor.

Engraçado, o processo do enamoramento. Lá estava a pessoa bem, com sua vida normal, com seu cotidiano e seus costumes. Outra pessoa, que a primeira não conhecia nem sabia da existência, também tinha sua vida normal, com seu cotidiano e seus costumes. Por acaso (e o destino resume-se ao acaso acontecido) elas se encontram em um cotidiano qualquer. Passam despercebidos um do outro. Um é uma pessoa qualquer, como vemos centenas todos os dias. Outro, também é um qualquer e conta-se às centenas. Mas digamos que a freqüência de contato torna-se constante, devido ao posicionamento social coincidente de ambos (colegas de escola, faculdade ou trabalho; vizinhos; co-parentes etc). Um dia acabam se encontrando de uma forma que exige comunicação verbal olá? tudo bem? tudo e você? eu também. me chamo... e eu... prazer. foi todo meu. até. até. Aí a comunicação verbal formal passa a ser constante. Constante. Constante. Constante. Constante. Água mole em pedra mole tanto amola que um dia emula. (Talvez o ditado não seja assim. E que vá pro diabo com o ditado!) Um dos dois acaba, em um momento de cessão à Freud, reparando em outras qualidades no outro-interlocutor do olá? tudo bem? tudo e você? eu também. me chamo... e eu... prazer. foi todo meu. até. até. Não é que o outro é lindo? Passa o tempo. Devido a algumas conversas... E inteligente. Mais algumas. E simpatissíssimo. Só mais algumas, prometo. Gamou. Quem sabe com o outro não se deu o mesmo processo. Em um momento de cessão à Freud, o ser já desejado, repara em outras qualidades no outro-interlocutor do olá? tudo bem? tudo e você? eu também. me chamo... e eu... prazer. foi todo meu. até. até. Não é que o outro é lindo? Passa o tempo. Devido a algumas conversas... E inteligente. Mais algumas. E simpatissíssimo. Só mais algumas, prometo. Gamou. Lá está o potencial par romântico. As aproximações são agora permeadas por estratégias inconscientes e conscientes de cunho erótico. O corpo libera substâncias que invocam o sexo almejado. O perfume de R$ 56,90 impede que o desajeitado faro humano cumpra sua missão. Mas o contato segue. Em moldes mais simbólicos, uma vez que o bicho-homem não leva jeito pra ser bicho-bicho. Ai, meu Deus! Enquanto falava em bicho-bicho-bicho-bicho, os dois, olhem lá!, já trocaram telefones, MSN, orkut, youtube, fotolog, blog. Fim de expediente na sexta. Chuva. Quer uma carona? Te levo até o ponto. Aceito, caso contrário não chego em casa hoje. Não chegou. Do bar, foram pra um motel, bem ao lado. Amanhã festejam um mês de namoro. E é assim que as coisas vão acontecendo. As pessoas vão chegando em nossas vidas e vamos nos apaixonando por elas. Muitas outras poderiam ter aparecido, mas não apareceram. Foi ele. Foi ela. E pronto. Era o destino!, dizem. Mas as coisas podem ter outro formato também. Imaginem que o cara desejasse ela profundamente. Um dia, no elevador da faculdade se encontram. Ela, que já o conhecia de olá? tudo bem? tudo e você? eu também. me chamo... e eu... prazer. foi todo meu. até. até., puxa assunto. Meu Deus! Logo hoje. Ele, de ressaca, não pode abrir a boca, sob risco de vomitar em cima dela. A cada frase dela ele apenas acena com rosto nitidamente artificialmente sereno. Não diz nada. Pi. Elevador no destino. Ambos saem. O cumprimento dela já é frio. Cada qual para seu lado. Ela pensa que cara chato! esnobe! A relação entre ambos se altera. Nada nunca rolou entre os dois. O amor potencial esvaiu-se no ar. Maldita ressaca! Contudo, se ele percebeu que perdeu uma garota, entretanto, nenhum dos dois percebeu que perderam um amor. Hoje um comemora um mês de namoro com Lili (do poema Quadrilha do Drummond). Outro tem um encontro marcado com um par pelo qual está perdidamente apaixonado (o J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história, do mesmo poema). Assim vai o amor. Esta idéia central da modernidade. Amores eternos que, como dizia o poeta, duram apenas enquanto duram. Amores que, potenciais, nunca se concretizam. Amores que seriam, mas não serão. Amores que foram e impediram outros. Sempre amores. Jamais amor.

15.11.06

Eu e a pedra

Lá está a pedra
Melhor que eu, que cá estou
Séculos a admiram
Eu apenas anos
Ela ascende
Eu quebranto
Melhor ser pedra
Que ser eu

12.11.06

Consolação

Tristeza profunda só se desfaz quando a dor chega

Aí a gente sente a dor

E deixa de sentir tristeza

4.11.06

Muitos fins e muitos recomeços...

Fim de tarde. Fim de semana. Fim de feriado. São muitos fins e muitos recomeços em um ciclo doentio chamado vida.

Ao regressarmos de momentos lúdicos típicos de feriado (praia, piscina, churrasco, cerveja, mulheres, música, almoços etc) e chegarmos em casa, sentimos todo o cansaço acumulado e a vontade imensa de um banho e um breve e necessário cochilo. No entanto, se analisarmos a situação com mais calma, perceberemos que é algo mais do que cansaço o que sentimos: é o vazio. Depois de bons momentos de euforia e de relações tácteis com amigos e parceiros(as), regressamos para onde estamos sós. Ao nos encontrarmos a sós no quarto percebemos a própria solidão. Desejamos inconscientemente a permanência das boas sensações vividas há pouco, mas nos é impossível: resta-nos lembranças. Fica o vazio.

Os momentos de alegria e regozijo nos são raros. Logo retornamos ao cotidiano-regra: repetitivo, automático, solitário, enfadonho, triste. E é por isso que o fim do feriado é sempre sentido com melancolia. Não há melancolia maior que o pôr-do-sol que encerra o feriadão.

Esse é um momento que se repete na vida dos homens modernos. O cristianismo, enquanto religião, ou seja, como discurso ordenador da ordem simbólica do mundo, nos responde a essa situação de maneira completamente satisfatória, posto que absoluta: os prazeres da carne não satisfazem a sede espiritual. E, posto ser o espírito o que realmente importa, depois de lambuzar-nos no mundo pagão, sentimos a solidão interior – a ausência do Absoluto em nós: Cristo. É preciso, então, buscar o alimento espiritual, que nos remeterá a uma ordem transcendente – o reino dos céus.

Se pegarmos a explicação cristã e substituirmos Cristo pelo projeto existencial que mantemos, temos uma boa hipótese filosófica. Assim, aproveitamos o estar junto com outros para nos livramos de nosso próprio ser. Findo o contato, encontramo-nos a sós novamente com nossa própria liberdade. E aí não sabemos mais o que fazer; não sabemos se realmente curtimos o que curtimos ou se tão-somente lamentamos o encerramento do prazer vivido. O fato é que a melancolia (ou uma leve depressão) reina após o prazer. Talvez nos falte o transcendente. Mas a transcendência que se encontra não em uma outra realidade, mas no mundo da vida. A transcendência que se encontra em nós, naquilo que projetamos ser em um mundo hostil a espíritos sensíveis. Falta-nos estética.

Quando alcançarmos esse nível de auto-projeção, então os momentos pós-contato serão momentos extremamente estéticos; não mais aflição vazia – o Cristo pagão (Dioniso) terá sido alcançado. Da aflição e da angústia é impossível libertar-se, mas é possível, a partir delas, escrever belas poesias.

28.10.06

insustentável leveza insuficiente

Sim, já falaram na insustentável leveza, mas talvez tenham deixado de lado a insuficiência. De fato, cá estou eu: insuficiente. Não caibo em mim e transbordo pelas beiradas. Contamino e adoeço. Os anti-corpos vão pelo lado de fora. E quem, mais do que eu, é um anti-corpo? Do lado de dentro apenas desejo. Mas desejo de não-realização. Tenho plena consciência de que se tivesse meus desejos realizados seria extremamente infeliz. Não! Quero apenas a busca... Quero apenas a aposta. E se for pra escolher, prefiro perder. No entanto, em zonas de não-consciência, eu comemoro vitórias. E ela segue o rumo dela. Eu sigo o meu, com outras. Tudo isso falo comigo mesmo e me escondo atrás de meu ser plasmado. A todos os outros: “Oi, tudo bem? Como está? Eu tou bem.” Loucura momentânea. Estou bem. Amanhã estarei melhor. E... E... E o espírito de Deus pairava sobre a face das águas.

12.10.06

Da dignidade humana


À Tássia Camila


Depois de uma cansativa aula, dirigia-me com andar pesado por sobre as ruas repletas de pessoas. A movimentação era-me completamente indiferente e o único pensamento consciente que me perpassava era de que deveria chegar logo à casa de minha tia. Foi, então, que a visão de um senhor de classe média (alta, talvez) me chamou a atenção. Ele alimentava os pombos ostentando um doce olhar e uma alma leve. Aproximei-me curiosa. Demonstrando sua amabilidade também para com os seres humanos ele puxou assunto comigo: “a natureza é perfeita”. Disse adorar o arrulhar dos pombos e que adorava também os peixes, principalmente os de água salgada, que têm a liberdade de navegar pelos mares. Deleitava-me com a conversa. Não percebi terem se passado dez minutos. A praça continuava sua vida normal, com seus vendedores de pipoca e picolé, crianças a brincar, adultos apressados se dirigindo de um ponto qualquer a outro, também, qualquer – e que só não faziam o trajeto em linha reta porque árvores incômodas lhes atravessavam o caminho - e um varredor trabalhando para a limpeza do que outros novamente sujarão. Daí apareceu outra figura citadina – bastante incômoda à sensibilidade burguesa: um mendigo. Ele se aproximou do senhor dos pombos e pediu um cadinho do milho para si – peripécias da fome. O tão amável senhor mudou tão imediatamente a fisionomia a ponto de me surpreender. De cara emburrada tirou um punhado de milho e doou sem olhar o traste inumano que ousava ter fome e incomodar aqueles que não a sentem. Como que pressentindo um grave perigo ou, talvez, devido ao imenso asco, o senhor dos pombos me puxou para longe a fim de me colocar em uma segura distância daquilo que a nossa sociedade civilizada repugna. Ele nem sequer se virou uma vez mais para ver o mendigo. Mas eu, como sempre curiosa e meio atônita, o fiz. Surpreendi-me com a visão do mendigo sentado em um banco da praça, sereno, a alimentar os pombos.

4.10.06

Breve conto sob influência de Dostoiévski

Um dia qualquer. Ele, que não lembra de seus sonhos em sono, acorda com todos os sonhos do mundo, como diz o Pessoa. Sente-se malditamente bem ao pôr os pés no chão, após alguns momentos silentes sentado na cama, com os cabelos desgrenhados e os olhos semi-cerrados. Pensava no que faria durante o dia, pois tinha a mania de planejar as suas ações cotidianas (aquelas que ele faria mesmo sem planejar, como um autômato que talvez fosse). Enumerava mentalmente: urinar; lavar o rosto; estralar os dedos; tomar café; sentar no sofá; ligar a tv etc. Valorizava demais as ações mais banais da vida diária e chegou a formular um sistema filosófico inconsciente para justificar seu fracasso sempre que pensava em fazer algo que desviasse do rumo da banalidade e do vazio. Como no dia em que planejou convidar uma garota para sair. Já vinha reparando nela há algum tempo e lhe chamava a atenção a inteligência aliada à beleza. Mas nunca soube como abordar uma garota: tomado por um romantismo anacrônico nunca foi capaz de entender como os rapazes de sua idade abordavam garotas de forma tão direta, descompromissada e, pior de tudo, vulgar e, ainda assim, alcançavam seu objetivo. Sua abordagem honrosa sempre lhe rendeu terríveis e dolorosos fracassos. Enquanto conversava com uma garota sobre as coisas belas da vida, um terceiro pedia o telefone e dizia sem rodeios que a telefonaria à noite para saírem juntos. A garota, após este intervalo de esquecimento dele, voltava-se para ele com um olhar compreensivo, como quem caritativamente escuta o que tem a falar, mas não consegue esconder o anseio de retirar-se dali. Mas insistia na tática, pensando consigo mesmo que um dia encontraria a garota que cairia a seus pés devido a sua forma de abordá-la. E esta, pensava, será a verdadeira merecedora de toda a minha paixão. Julgava que desta vez não haveria erro. A garota em questão seria conquistada. Acordou com esse intuito e levaria tudo às últimas conseqüências. Passou o dia a pensar em cada frase, em cada palavra, em cada gesto a dirigir a ela. À noite, no último dia de aula, sentou-se ao lado dela. Conversaram bastante sobre diversos assuntos sobre os quais a manada nunca compreenderia. E, de fato, rostos perturbados e perplexos encaravam os dois a conversar, como a questionar como duas pessoas poderiam passar a aula inteira sem prestar a mínima atenção ao professor e, ainda por cima, para conversar sobre assuntos como aqueles. Mas nada atrapalhava a fluência do colóquio. A empatia era total. Era chegada a hora decisiva, o momento pelo qual esperou ansiosamente, o instante de pôr em prática aquilo que havia minuciosamente treinado. Mas um calafrio o perpassou subitamente. Pensou ter encontrado a garota dos sonhos e temeu jogar tudo por água abaixo em uma cartada arriscada e, quem sabe, precipitada. Resignou-se e, por um momento, o silêncio pairou sobre os dois. Ela puxou algum assunto. Ele, atordoado, pediu para que ela repetisse, pois não fora capaz sequer de escutá-la. A conversa voltou a fluir por uns instantes. Alguns minutos e ambos se despediram, cada qual tomando uma direção. Hoje se vêem esporadicamente e se tratam de maneira fria. Mas naquela noite ela não conseguiu dormir antes da alta madrugada, pois seu pensamento estava fixo no rapaz doce e poético que, no entanto, não tinha interesse nela. Lamentou-se pelo seu azar e convenceu-se de que seu destino era arranjar-se com algum rapaz da manada, grosseiro e maquinal. Ele, por sua vez, pensou ter feito a coisa certa ao nada fazer, pois havia se convencido de que seu destino era a solidão e que seu sistema filosófico inconsciente estava correto: tudo o que se distancia da banalidade e do vazio estão irremediavelmente fadados ao fracasso.

22.9.06

Quando é melhor calar-se

É difícil falar de algo quando não se tem nada a falar. No entanto há que se falar. Vivemos em um tempo em que falar, seja o que for, é imperativo. O silêncio incomoda. O silêncio não entretém. O silêncio é instante que alimenta a introspecção; que nos causa vergonha de olhar o outro e, por isso, nos faz olhar a nós mesmos. Mas o que temos para ver em nós mesmos? Verdade que nos identificamos enquanto eu a partir da visão do não-eu, ou seja, do outro. Mas é no momento de introspecção que esse eu formado em relação se identifica a si mesmo. Mas esse momento de introspecção nos é hoje doloroso. Quando estamos a sós no mais absoluto silêncio tratamos logo de ligar a televisão ou o aparelho de som em vista de abafarmos a nossa “essência” que poderia aflorar a qualquer momento. Inventamos algum barulho para nos levar para longe de nosso ser inconsciente. Passamos, dessa forma, a conformarmos nossas identidades a partir do que fazemos: daquilo que somos especialistas no mundo do trabalho; daquilo que ouvimos ou dos gêneros de filmes que assistimos; daquilo de que preferimos nos alimentar; daqueles com os quais preferimos manter relações sexuais etc. No entanto, nossa maior riqueza não está naquilo que fazemos, mas naquilo que sonhamos, mas que os constrangimentos naturais da vida em sociedade não nos permitem realizar na íntegra e que são agravados por um modo de vida social que nos faz sentirmos envergonhados de estarmos a sós consigo mesmos. Os momentos de absoluto silêncio e de solidão mortal já não são mais encarados como momento de apreender a si mesmo em seu íntimo, como na era pré-tv, ou melhor, na época em que a ênfase social se dava mais na produção do que no consumo. Na época do consumismo do entretenimento, o silêncio é abafado por um produto qualquer. Daí que o silêncio não seja mais tolerado nas relações sociais e que cause mal-estar quando as pessoas estão interagindo. Perdemos a capacidade contemplativa. Nos tornamos seres ávidos de consumir uma palhaçada qualquer, contanto que ela nos entretenha, nos tome o nosso tempo livre, nos livre do pesadelo de nossa própria liberdade. E, no entanto, valorizamos a nossa liberdade de poder sintonizar a Piatã FM ou a Itaparica FM. Eu, do meu lado, vou me calando por aqui...

(postado originalmente aqui)

17.9.06

Máscaras

Todos precisam de máscaras

E é por precisar delas que as amam

E a isso chamam covardemente de EU

Enquanto isso o EU dorme profundamente

Alheio a toda a realidade

9.9.06

A vida desperdiçada

A vida desperdiça-se durante o sono
No entanto quereria eu dormir a vida inteira...

Tragam-me uma dose de café quente
Pois já não quero mais dormir
Quero antes resistir bravamente ao sono até quedar-me sobre o chão
Onde jazem todos os sonhos

Oh, sono de vida!
Vontade imensa de Ser que transubstancia-se no absoluto não-Ser
Quereria eu dormir
Mas já não é mais possível...

Resta-me, acordado, sentir todas as dores do mundo
E nelas encontrar prazer
Com a leve esperança de que um dia o sono virá
Pois sempre vem...
Irremediavelmente vem...
Sempre dormimos como um bebê ao fim da nossa jornada existencial

3.9.06

Da doença social

Estudando Foucault encontramos uma modernidade na qual o Sujeito emergiu. As cadeias do Ancién Régime foram quebradas e o indivíduo pôde, enfim, viver o seu Ser verdadeiro. É verdade que este autor também tratou longamente das novas formas que a modernidade encontrou para efetivar o controle social, mas este seria um controle diferenciado, onde o indivíduo mantém parte de sua autonomia. Baboseiras como essa também foram compartilhadas por pessoas de bem, como o Sartre. Para este, a liberdade de escolha do indivíduo seria total. Todo o Ser seria responsabilidade do próprio Ser, pouco importando os constrangimentos externos à ação, pois, para Sartre, “não importa o que fazem de mim, mas o que eu faço do que fizeram de mim”.

Lendo Baudrillard, no entanto, vemos o outro lado da moeda. Em seu livro Esquecer Foucault este autor desconstrói a ilusão da autonomia e do surgimento do indivíduo, afirmando que a modernidade não foi marcada pelo surgimento deste, mas apenas pelo surgimento da ilusão deste. A autonomia individual propalada pelos grandes teóricos clássicos do liberalismo seria apenas parte da legitimação ideológica de uma configuração social marcada pela dominação da maioria pela minoria e pela homogeneidade da experiência existencial. As diversas formas possíveis de levar a própria vida não decorrem da criação e da autenticidade do ser e estar no mundo, mas apenas da liberdade de escolher dentre as formas disponíveis de experiência. Mais ou menos similar ao que acontece em um supermercado: os carrinhos das diferentes pessoas estão cheios de diferentes mercadorias, mas estas, por sua vez, foram disponibilizadas antecipadamente. Como são diversas as possibilidades combinatórias dentre as mercadorias possíveis, cada carrinho terá uma composição diferente. A isso chamamos autenticidade individual! No plano social, as combinações são inúmeras e podemos sobrepor diversas identidades toleradas pelo sistema para conformarmos a nossa individualidade. Exemplo: estudar administração na UCSal; ouvir música clássica; ler Dostoievski, Paulo Coelho e revista Contigo; beber e fumar; ser católico não-praticante, mas freqüentar o espiritismo; ir para a Choppada de Medicina da UFBA e Tom Zé na Concha etc. Outro exemplo: estudar administração na UCSal; ouvir axé e MPB; ler Paulo Coelho e revista Contigo; beber; ser católico praticante; ir para a Choppada de Medicina da UFBA e detestar Tom Zé. Tudo dentro dos limites dos modelos de Ser oferecidos pelo mercado da existência. Algumas vezes pode ocorrer das individualidades conformadas se tornarem demasiado distantes uma da outra e isso acarretar na impossibilidade do diálogo. Por exemplo, uma pessoa da tribo punk e outra da tribo do arrocha. Mas esta diferenciação brutal é tão brutal quanto um carrinho de supermercado com laranjas e bananas e outro com sabão em pó e água sanitária. Como se diz, não se pode comparar cachorro com banana.

Assim, vamos glorificando o capitalismo e a modernidade por nos permitir sermos nós mesmos (sic). E o que eram as pessoas sob o Feudalismo? As pessoas sempre são elas mesmas, respeitados os limites da estrutura social da época. Contudo, apesar da visão catastrofista apresentada no parágrafo anterior, acredito que as configurações sociais podem ser modificadas historicamente, como efetivamente o são, sempre de maneira inconsciente e não-linear. Também acredito que o Sujeito exista, com seus sonhos e sofrimentos. Então, este sujeito colonizado (como todo ser humano dentro de uma ordem social), diante da possibilidade da mudança social, pode ser um dos diversos agentes de transformação do seu círculo existencial e até mesmo da estrutura social. A transformação, contudo, nunca será a objetivação de sua vontade, mas a síntese oriunda das lutas travadas em prol dos mais variados projetos sócio-históricos e existenciais. Por não ser linear, a mudança também pode ser para uma configuração ainda mais opressora e castrante. De fato, ao longo do capitalismo, é possível verificarmos diversos momentos em que o nível de liberdade foi mais estendido. Hoje, contudo, verificamos uma subordinação de todas as lógicas sociais à lógica do mercado. Se o movimento histórico continuar nesta direção, dentro em breve poderemos nos referir à civilização ocidental como sociedade simples, em vista de seu alto nível de homogeneidade (onde a individualidade se restringe ao tipo de consumo adotado) e consciência coletiva (consumista). Em outros tempos (olha a nostalgia), pelo menos os campos da arte, da educação e produção de sentimentos e pulsões ainda não estavam colonizados pelo mercado. E se o indivíduo nunca será livre como pensava Sartre, pelo menos havia certos espaços restritos para o exercício da liberdade vigiada. Hoje há o consumo espetacular. É esta a doença social: caminhamos alegremente à homogeneização mais brutal acreditando estarmos realizando um projeto individual, quando estamos apenas recusando a possibilidade de executarmos projetos diferentes dentro da mesma sociedade, uma vez que o único projeto hoje é o do consumo. Talvez a liberdade sartreana tenha escolhido a não-liberdade. Resta-nos viver a doença e esperar que a cura algum dia esteja à venda nas farmácias...

1.9.06

Palavras do eterno agora (título meu)

qualquer coisa dita agora é silêncio.
qualquer desabafo agora é grito.
qualquer amor agora é saudade.
qualquer abraço agora é consolo.
qualquer choro agora é vão.
qualquer certeza agora é sonho.
qualquer foto agora é passado.
qualquer presença agora é ausência.
qualquer segredo agora é nosso.


Emanuelle Maia
(grande amiga minha)

26.8.06

Pela repolitização da política

Do Folha de São Paulo (25/08/06): “Em palestra, Marilena Chauí defende veia conflituosa da democracia”. E o texto do diário continua: “A filósofa Marilena Chauí defendeu anteontem, no Rio, durante sua participação no ciclo de debates ‘O Esquecimento da Política’, que democracia, mais que respeito às leis estabelecidas, é conflito. ’A democracia é a sociedade aberta ao tempo, ao possível, ao novo. Não está fixada numa forma para sempre determinada’, disse Chauí durante sua palestra. ‘Podemos afirmar que a democracia é a única forma da política que considera o conflito legítimo’. O argumento que o filósofo Baruch de Espinosa (1632-1677) usou para afirmar a superioridade da democracia sobre qualquer outro regime se contrapunha à definição liberal da experiência democrática. Para os liberais, disse Chauí, a democracia ‘é o regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais’, o que redundaria na tentativa de conter os conflitos sociais. Para Espinosa, afirmou Chauí, só a democracia permite aos indivíduos a afirmação de suas virtudes, sem medo”.

Atualmente, vivemos, contudo, numa época em que a política se despolitiza, tornando-se espetáculo. O show político - oriundo das propagandas midiáticas, das pesquisas de opinião e do marketing político – cria uma convergência entre opostos no campo ideológico. Os programas políticos tornam-se equivalentes e todos, sem exceção, são submetidos à lógica da política da nulidade, onde é proibido defender qualquer projeto, mesmo no âmbito democrático, que tenha como foco a mudança. O horário eleitoral é prova da convergência política da nulidade total: candidatos sorrindo, assemelhando-se ao Exterminador do Futuro, beijando crianças e fazendo os mesmos discursos preparados pelos marketeiros. As diferenças passam a ser mínimas entre os partidos e projetos políticos: a esquerda e a direita estão submetidas à despolitização da política, uma vez que ambas já se submeteram totalmente ao capital. E não proponho aqui uma revolta de tipo marxista-leninista contra o capital; apenas a recuperação da política de sua capacidade de intervenção na realidade de forma mais soberana. Na era dos extremos, o século XX, era a política quem definia as diretrizes sociais. Se o século XX nos trouxe experiências amargas, contudo nos mostrou que podemos construir a civilidade: cidadãos discutindo e construindo seus rumos. Com todos os conflitos aí envolvidos. Precisamos recuperar esta dimensão do conflito democrático como forma de repolitizar a política. Como? Não sei. A realidade nos induz a uma perspectiva atroz. Mas mantenho minha opinião, na falta do que fazer. Chega por hoje. Vou jogar dominó.

Ah. Lembrei de uma frase interessante, do Nicolau Maquiavel: “O mundo da política não leva aos céus, mas sua ausência é o pior dos infernos”.

24.8.06

Falando de amor

Me perguntaram porque não falo de amor em meu blog extemporâneo.

Talvez a razão seja que o amor, mesmo o eterno, é sempre algo fugaz e efêmero, o que o tornaria assunto do outro blog.

Mas mais do que isso, tenho tido tantas coisas em que pensar ultimamente que esqueci de pensar a respeito do amor. Esqueci, inclusive, de amar. (Com exceção dos meus livros e da cocada de abacaxi que trouxeram aqui em casa.)

O amor é um sentimento belíssimo. Admito.

Quando tiver mais tempo amarei um pouco mais. Prometo.

Ademais, amor é sempre uma opção de algo a se fazer quando se estiver entediado.

Falarei mais a respeito. Em ambos os blogs.

21.8.06

Cause and effect


the best often die by their own hand
just to get away,
and those left behind
can never quite understand
why anybody
would ever want to
get away
from
them


Charles Bukowski

19.8.06

Conversa sobre dores e cavalo no elevador...

Passei as últimas quarenta e oito horas curtindo minha decadência física. Para acompanhar as dores de cabeça, a ânsia ininterrupta de vômito, a febre e as dores estomacais, tratei de colocar alguns pensamentos pessimistas na cabeça e mais um pouco de Pink Floyd na cabeceira da cama. Para completar o quadro animador, é sábado à tarde e estou só.

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O cavalo entra no elevador e eu não acredito que ele poderia caber em tão apertado recinto. Mas o maldito tinha seus truques: transformou-se em uma batida tábua de passar roupa e escorou-se num canto. Tratei de alisar suas costas tabuadas. E saltei do elevador em direção à minha casa pensando que algo estranho havia acontecido.

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Talvez a existência seja dura demais. A vida devia vir em gotas. E de éter.

11.8.06

Por que o sapo não lava o pé?

Platão: O sapo que vemos é nada além da corruptela do sapo ideal, que a alma conheceu antes da Queda. O sapo ideal lava seus pés eternos com esponjas imutáveis, num mundo sem movimento. O sapo imperfeito, porém, jamais lava os pés.
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Aristóteles: O [sapo] lava de acordo com sua natureza! Se imitasse, estaria fazendo arte. Como [a arte] é digna somente do homem, é forçoso reconhecer que o sapo lava segundo sua natureza de sapo, passando da potência ao ato. O sapo que não lava o pé é o ser que não consegue realizar [essa] transição da potência ao ato.
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Diógenes, o Cínico: Foda-se o sapo, eu só quero tomar meu sol.
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Parmênides de Eléia: Como poderia o sapo lavar os pés, ó deuses, se o movimento não existe?
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Heráclito de Éfeso: Quando o sapo lava o pé, nem ele nem o pé são mais os mesmos, pois ambos se modificam na lavagem, devido à impermanência das coisas.
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Epicuro: O sapo deve alcançar o prazer, que é o Bem supremo, mas sem excessos. Que lave ou não o pé, decida-se de acordo com a circunstância. O vital é que mantenha a serenidade de espírito e fuja da dor.
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Estóicos: O sapo deve lavar seu pé segundo as estações do ano. No inverno, mantenha-o sujo, que é de acordo com a natureza. No verão, lave-o delicadamente à beira das fontes, mas sem exageros. E que pare de comer tantas moscas, a comida só serve para o sustento do corpo.
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Descartes:
Nada distinguo na lavagem do pé senão figura, movimento e extensão. O sapo é nada mais que um autômato, um mecanismo. Deve lavar seus pés para promover a autoconservação, como um relógio precisa de corda.
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Locke: Em primeiro lugar, faz-se mister refutar a tese de Filmer sobre a lavagem bíblica dos pés. Se fosse assim, eu próprio seria obrigado a lavar meus pés na lagoa, o que, sustento, não é o caso. Cada súdito contrata com o Soberano para proteger sua propriedade, e entendo contido nesse ideal o conceito de liberdade. Se o sapo não quer lavar o pé, o Soberano não pode obrigá-lo, tampouco recriminá-lo pelo chulé. E, ainda afirmo: caso o Soberano queira, incorrendo em erro, obrigá-lo, o sapo possuirá legítimo direito de resistência contra esta reconhecida injustiça e opressão.
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Kant: O sapo age moralmente, pois, ao deixar de lavar seu pé, nada faz além de que atuar segundo sua lei moral universal apriorística, que prescreve atitudes consoantes com o que o sujeito cognoscente possa querer que se torne uma ação universal.
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Hegel: Podemos observar na lavagem do pé a manifestação da Dialética. Observando a História, constatamos uma evolução gradativa da ignorância absoluta do sapo – em relação à higiene – para uma preocupação maior em relação a esta. Ao longo da evolução do Espírito da História, vemos os sapos se aproximando cada vez mais das lagoas, cada vez mais comprando esponjas e sabões. O que falta agora é, tão somente, lavar o pé, coisa que, quando concluída, representará o fim da História e o ápice do progresso.
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Marx: A lavagem do pé, enquanto atividade vital do anfíbio, encontra-se alterada no panorama capitalista. O sapo, obviamente um proletário, tendo que vender sua força de trabalho para um sistema de produção baseado na detenção da propriedade privada pelas classes dominantes, gasta em atividade produtiva o tempo que deveria ter para si próprio. Em conseqüência, a miséria domina os campos, e o sapo não tem acesso à própria lagoa, que em tempos imemoriais fazia parte do sistema comum de produção.
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Engels: Isso mesmo.
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Kierkegaard: O sapo lavando o pé ou não, o que importa é a existência.
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Comte: O sapo deve lavar o pé, posto que a higiene é imprescindível. A lavagem do pé deve ser submetida a procedimentos científicos universal e atemporalmente válidos. Só assim poder-se-á obter um conhecimento verdadeiro a respeito.
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Schopenhauer: O sapo cujo pé vejo lavar é nada mais que uma representação, um fenômeno, oriundo da ilusão fundamental que é o meu princípio de razão. A Vontade, que o velho e grande filósofo de Königsberg chamou de Coisa-em si, e que Platão localizava no mundo das idéias, essa força cega que está por trás de qualquer fenômeno, jamais poderá ser capturada por nós, seres individuados, através do princípio da razão, conforme já demonstrado por mim em uma série de trabalhos, entre os quais o que considero o maior livro de filosofia já escrito no passado, no presente e no futuro: O mundo como vontade e representação.
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Nietzsche: Um espírito astucioso e camuflado, um gosto anfíbio pela dissimulação - herança de povos mediterrâneos, certamente - uma incisividade de espírito ainda não encontrada nas mais ermas redondezas de quaisquer lagoas do mundo dito civilizado. Um animal que, livrando-se de qualquer metafísica, e que, aprimorando seu instinto de realidade, com a dolcezza audaciosa já perdida pelo europeu moderno, nega o ato supremo, o ato cuja negação configura a mais nítida – e difícil – fronteira entre o Sapo e aquele que está por vir, o Além- do-Sapo: a lavagem do pé.
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Freud: Um superego exacerbado pode ser a causa da falta de higiene do sapo. Quando analisava o caso de Dora, há vinte anos, pude perceber alguns dos traços deste problema. De fato, em meus numerosos estudos posteriores, pude constatar que a aversão pela limpeza, do mesmo modo que a obsessão por ela, podem constituir-se num desejo de autopunição. A causa disso encontra-se, sem dúvida, na construção do superego a partir das figuras perdidas dos pais, que antes representavam a fonte de todo conteúdo moral do girino.
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Weber: A conduta do sapo só poderá ser compreendida em termos de ação social racional orientada por valores. A crescente racionalização e o desencantamento do mundo provocaram, no pensamento ocidental, uma preocupação excessiva na orientação racional com relação a fins. Eis que, portanto, parece absurdo à maior parte das pessoas o sapo não lavar o pé. Entretanto, é fundamental que seja compreendido que, se o sapo não lava o pé, é porque tal atitude encontra-se perfeitamente coerente com seu sistema valorativo – a vida na lagoa.
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Jung:
O mito do sapo do deserto, presente no imaginário semita, vem a calhar para a compreensão do fenômeno. O inconsciente coletivo do sapo, em outras épocas desenvolvido, guardou em sua composição mais íntima a idéia da seca, da privação, da necessidade. Por isso, mesmo quando colocado frente a uma lagoa, em época de abundância, o sapo não lava o pé.
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Foucault: Em primeiro lugar, creio que deveríamos começar a análise do poder a partir de suas extremidades menos visíveis, a partir dos discursos médicos de saúde, por exemplo. Por que deveria o sapo lavar o pé? Se analisarmos os hábitos higiênicos e sanitários da Europa no século XII, veremos que os sapos possuíam uma menor preocupação em relação à higiene do pé – bem como de outras áreas do corpo. Somente com a preocupação burguesa em relação às disciplinas – domesticação do corpo do indivíduo, sem a qual o sistema capitalista jamais seria possível – é que surge a preocupação com a lavagem do pé. Portanto, temos o discurso da lavagem do pé como sinal sintomático da sociedade disciplinar.
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Bobbio: existem três tipos de teoria sobre o sapo não lavar o pé. O primeiro tipo aceita a não-lavagem do pé como natural, nada existindo a reprovar nesse ato. O segundo tipo acredita que ela seja moral ou axiologicamente errada. A terceira espécie limita-se a descrever o fenômeno, procurando uma certa neutralidade.
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Olavo de Carvalho: O sapo não lava o pé. Não lava porque não quer. Ele mora lá na lagoa, não lava o pé porque não quer e ainda culpa o sistema, quando a culpa é da PREGUIÇA. Este tipo de atitude é que infesta o Brasil e o Mundo, um tipo de atitude oriundo de uma complexa conspiração moscovita contra a livre-iniciativa e os valores humanos da educação e da higiene!



(TEXTO NÃO-MEU)

10.8.06

Nietzsche está morto...

Vejam um grande vídeo.

O rapaz, a desgraça e o belo

O rapaz sai do prédio do consultório médico com a certeza de que está tão doente quanto a humanidade inteira. A decadência física do recinto e das redondezas, que chega a lembrar um cenário de guerra, apenas comprova o câncer que domina a sociedade civilizada! Ele caminha, cabisbaixo e taciturno, pensando na injustiça que parece ser inerente à existência. Imagens em preto e branco lhe vêm à cabeça, alternando com seu caminhar pesado: garotos de rua em frente ao shopping Iguatemi; Justiça Federal opulenta e favela no CAB; mendigo em frente à majestosa Igreja Universal; presídio em rebelião; hospital geral infestado de semi-mortos; ônibus lotado no rush; outras tantas e tão inefáveis imagens em flash inconsciente que aqui não poderiam ser descritas.

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Em sua caminhada em direção ao nada – que poderia ser rumo ao precipício, sem que isso fizesse diferença alguma – ele encontrou um objeto jogado ao chão. Na ânsia de ver do que se tratava e esperançoso de que a sorte lhe estivesse sorrindo, ele apanha o embrulho velho. Desenrola apressadamente e resfolega: era apenas um livro velho e idiota!, pensou. Joga-o com gosto ao chão. O livro cai aberto. Com remorsos de sua atitude agressiva, apanha o livro para deixá-lo no mesmo local no qual o encontrou, pensando que o dono poderia vir procurá-lo. Meio sem querer, vê que a página aberta traz um poema, ao qual lhe dirige um breve olhar e lê:

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Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

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Perante a beleza dos versos, estagna. Lê mais um pouco:

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O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

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Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

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Sente-se inacreditavelmente bem e debruça-se sobre o livro:

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Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

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A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

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Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

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Acaba por pensar que o achado era, enfim, um bom presente. Reconfortado, busca o ar fresco da orla marítima e vê, para além das desgraças da humanidade, um mundo cheio de vida e cores: um pássaro que passa por sobre a cabeça; surfista gozando a possível liberdade ao mar; uma moça bonita que passa e lhe dá atenção; estudantes que brincam uns com os outros sem preocupações outras que não o divertir-se e esquivar-se das jocosidades dos demais... Imagens que o levam a crer que ainda há beleza no cotidiano e esperança no horizonte.

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Sim, ele está doente e o mundo inteiro também. Mas há sempre um pássaro a passar altivo por sobre a cabeça.

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PS. Poema de Carlos Drummond de Andrade, chamado Consolo na praia.

9.8.06

Sociedade de Massa

O que explicaria o fenômeno da sociedade de massa, se entendermos por tal uma configuração social que sublima os indivíduos em um bloco inefável e amorfo colonizado pelo fetichismo extremo do mercado, da mercadoria e do consumo? Como alguém pode pertencer à essa massa?

Talvez a resposta esteja em um índice a que chamarei nível de demanda explicativa. Se os indivíduos são socializados para se identificarem com o sistema do consumismo passivo, suas atividades cotidianas mais banais – no trabalho (produção) e no tempo livre (consumo) – passam a ser seu universo de significado. Nada além dessa díade fará sentido. Tudo o mais será considerado supérfluo. Conhecimento crítico, arte, cultura, poesia, tudo soará como retrógrado e anacrônico – algo que foi mas não é mais. O que interessa é trabalhar no mundo da produção e depois consumir o que outros produziram em seus mundos da produção. O nível de demanda explicativa da realidade é reduzido a um grau baixíssimo e tudo o que aparentar ser “complexo” é transportado para o além-do-mundo, para o sobrenatural, o que explica a explosão das religiões de mercado. O ser-da-massa vive seu cotidiano adestrado de trabalho-consumo e quando sua natureza humana lhe leva à questionar ele remete tudo ao divino. Pronto, a realidade, para o ser-da-massa, está, assim, esgotada. Tudo está como é e como tem que ser. Vamos ao shopping center.

Numa sociedade que um dia almejou a emancipação, um pouco de luz pode estar no aumento do índice de demanda explicativa da realidade. Para tanto, faz-se mister seres críticos que não se isolem da massa e, num esforço descomunal, engaje-se no projeto de desnaturalizar o natural. Nada de oferecer respostas, mas questões.

25.7.06

A vida como ela seria, mas não é


“Nos perguntam: a vida privada está privada de que? Muito simples: da vida, que está cruelmente ausente. Estamos privados de comunicação e da realização de si mesmos até os limites do possível. Dever-se-ia dizer: privados de fazermos pessoalmente a própria história.”

Guy Debord em Perspectivas da transformação consciente da vida cotidiana

Esse trecho do texto de Debord me levou à alguns devaneios filosófico-sociológicos acerca da identidade (o velho quem-sou-eu-onde-estou). De fato, como pode a vida estar privada da vida? O equívoco pode estar na perspectiva adotada, pois se pensarmos que as coisas são o que são e não aquilo que gostaríamos que fosse, a não-vida denunciada por Debord tornaria-se facilmente o tipo mais banal de vida real.

Daí podemos transpor o modelo para a identidade do indivíduo. Vejam este trecho de um soneto de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa):

“Nem nunca, propriamente reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.”

A sociedade ocidental, fortemente lastreada na idéia de indivíduo, sempre foi acometida por questionamentos acerca do Ser. Ante a forte pressão para se adaptar aos modelos comportamentais da sociedade, bem como à sua visão de mundo (moral, estética, ideológica etc) e ao mundo do trabalho, o indivíduo, então, entra em uma espécie de crise existencial permanente e latente: será que sou-me? Ou sou apenas o que os outros querem que eu seja? Ou ainda: sou apenas aquilo que, em minha mediocridade, consegui ser?

A questão é: se você é o que os outros querem que você seja, então, não é exatamente isto que você é? Ou haveria algum “eu” escondido numa caverna platônica esperando vir à tona? Não acredito na segunda hipótese. O contato humano nos corrompe, no sentido de que, ao interagirmos, já somos uma síntese entre sonhos e vontades e aquilo que o realismo cotidiano nos permite concretizar. O sonho não é destruído, mas apenas confrontado com a realidade. E somos tanto idéia quanto aquilo que efetivamos. Nesse sentido, a vida verdadeira à qual Debord se referia é a vida que, para ele, seria a mais desejável. A vida a qual ele chamou de não-vida é tão vida quanto, mas apenas confrontada com o deserto do real. Assim também em relação à crise enfrentada por Álvaro de Campos. Ele poderia até não querer sentir o que sente, mas que sente não há dúvidas. Somos o nosso cotidiano, os sonhos frustrados, somos não apenas o que somos mas também aquilo que queríamos ter sido mas não fomos! E quanto queremos ainda ser mas temos plena consciência de que nunca seremos... E a isso chamemos vida!

24.7.06

Um pouco do pensador marginal Guy Debord



A crise atual da vida quotidiana se inscreve nas novas formas de crises do capitalismo, formas que passam desapercebidas por quem se obstina em calcular em função do vencimento clássico das próximas crises cíclicas da economia.

A desaparição de todos os antigos valores, de todas as referências da comunicação anterior ao capitalismo desenvolvido, e a impossibilidade de substituí-los por outros, quaisquer que sejam, sem conseguir previamente o domínio racional, tanto na vida quotidiana como em qualquer outro lugar, das novas forças industriais que cada vez mais escapam mais a nosso controle; estes fatos não só engendram a insatisfação quase oficial de nossa época, insatisfação particularmente aguda na juventude, mas ainda mais no movimento de auto-negação da arte. A atividade artística sempre foi a única que prestou contas dos problemas clandestinos da vida quotidiana, mas de uma maneira oculta, deformada, parcialmente ilusória. Diante de nossos olhos, já existe o testemunho de uma destruição de toda expressão artística: é a arte moderna.

Se consideramos em toda sua extensão a crise da sociedade contemporânea, não parece que o tempo de ócio pode ser considerado ainda como uma negação do quotidiano. Admitiu-se aqui a necessidade de "estudar o tempo perdido". Mas vejamos o movimento recente dessa idéia de tempo perdido. Para o capitalismo clássico, o tempo perdido é o tempo exterior à produção, à acumulação e à economia. A moral laica que se ensina nas escolas da burguesia implantou essa norma de vida. Entretanto por um ardil inesperado, o capitalismo moderno necessita acrescentar o consumo, "elevar o nível de vida" (tendo em mente que esta expressão carece rigorosamente de sentido). E dado que, ao mesmo tempo, as condições de produção, compartimentada e cronometrada até um grau extremo, se tornaram completamente insustentáveis, a moral que já abriu passagem na publicidade, na propaganda e em formas do espetáculo dominante, admite francamente que o tempo perdido é o tempo de trabalho, que já unicamente se justifica pelos diversos graus de lucro que procura, o qual permite comprar o repouso, o consumo, o tempo de ócio - ou seja, uma passividade quotidiana fabricada e controlada pelo capitalismo.

Nos perguntam: a vida privada está privada de que? Muito simples: da vida, que está cruelmente ausente. Estamos privados de comunicação e da realização de si mesmos até os limites do possível. Dever-se-ia dizer: privados de fazermos pessoalmente a própria história.


Guy Debord
Trechos de "Perspectivas da transformação consciente da vida cotidiana"

18.7.06

Sintomas de solidão e bem-estar

Estando só sinto-me mal

Porém, estando só sinto-me bem

Pois efetivamente sinto-me

E sento, sentindo-me

Sem sentir, sentado

17.7.06

O bicho - E o mendigo?

Tratamos de épocas históricas e de como homens-bichificados podem rebelar-se. Mas voltemos à temática do mendigo. Como ele pode rebelar-se? Ou seria mais pertinente a questão: quer, ele, rebelar-se? Sim, pois, de fato, o ato da rebeldia é sempre um luxo, ao qual um mendigo (e falo em mendigo enquanto arquétipo do não-vivo debordiano) não pode ceder. Antes do luxo vem a sobrevivência. Nesse sentido, a bichificação é uma arma inconsciente para a manutenção da vida. Em termos dos seres que podem se dar ao luxo da rebeldia, contudo, a bichificação é alienação de si mesmo, no sentido de remeter à outros (e esse outro poder ser as redes de poder e dominação da sociedade) a gerência da própria vida. Em um momento de hegemonia do princípio de mercado sobrepujando todas as demais sociabilidades, a forma mercadoria é fetichizada ao extremo e surge a sociedade do espetáculo (Debord) ou a economia política do Signo (Baudrillard). Nesse caso, a bichificação é não-vida. A sociedade passa a ter a liberdade (hedonismo, consumismo etc) enquanto princípio e a dominação (monopólios de mercado, indústria cultural etc) como regra. Enquanto isso, o mendigo mendiga.

16.7.06

O bicho – Possibilidades emancipatórias

Bichificação é um processo recorrente na humanidade, através do qual as massas se tornam massas e as elites permanecem elites. O homem-bicho é o ser cotidiano: raso, mas homem. Mas seria este argumento suficiente para promover a contemplação passiva ao nível de ideal a ser buscado em nome de um realismo inquestionável acerca da condição ontológica do ser? A ilusão racional-iluminista não nos deixou nenhum legado a ser conservado? E como a bichificação afeta o mundo da vida cotidiana? Não seria possível subverter o processo a partir desta esfera? Não se trata de substituir a sociedade dos homens-bicho pela comunidade platônica de filósofos, mas apenas de fazer dos homens-bicho homens-dançarinos, deslocando a proposta nietzscheana de seu caráter eminentemente aristocrático.

A história do século XX, a era dos extremos para Hobsbawn, serve-nos como paradigma do Abismo do qual Nietzsche nos avisava, estando de um lado a Fera e do outro o Além-do-Homem. Se, para além da esfera individual, transpomos este modelo para a configuração social, enxergamos a Fera enquanto totalitarismos, taylorismo/ fordismo, indústria cultural etc e o Além-do-Homem enquanto a utopia libertária que, por uns momentos, esteve ao alcance das mãos. Deste modo, por mais que a bichificação, segundo Schumpeter, mas não com estas palavras, seja ontológica à organização de sociedades complexas, existem níveis ou gradações para esta situação. Já se viveu uma época em que filmes de massa eram Casablanca e Histórias Extraordinárias (Poe by Fellini). O que, então, me faz contentar com Garfield e Independence Day? O nível (mediana, desvio-padrão etc) de bichificação na contemporaneidade pós-tudo é um exagero da condição humana elevado ao status de inescapabilidade. Apesar das visões catastrofistas baudrillardianas, podemos recuperar Nietzsche e Sartre para demonstrarmos a possibilidade fenomenológica da resistência. E ao ocorrer esta resistência individual à imbecilização coletiva, uma possibilidade social é também vislumbrada, pois se por um lado Lévi-Strauss está correto em suas afirmativas, também podemos nos apoiar em Marx: “os homens fazem a história tanto quanto esta os faz”. E é aí que a afirmação de Gramsci, já postada neste blog, adquire seu mais pleno sentido...

12.7.06

O bicho

O bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos

Quando encontrava alguma coisa
Não examinava nem cheirava
Engolia com voracidade

O bicho não era um cão
Não era um gato
Não era um rato

O bicho, meu deus, era um homem

Manuel Bandeira


Não é de hoje que a bichificação da humanidade ocorre. A filosofia racionalista e, posteriormente, a iluminista enxergavam uma quintessência transcendental no ser humano (tentativa pueril-histórica de lutar contra a bichificação), o que, de certa forma, trouxe à tona ideais a serem valorizados no campo das lutas políticas, como o grande ideal da igualdade. No entanto, tal posicionamento perante o mundo impedia estas filosofias de enxergar a distância entre Idéia e Real e, assim, elas compartilhavam do mesmo equívoco do idealismo.

O estruturalismo, principalmente a partir de Lévi-Strauss, nos blindou para estes excessos, nos mostrando que o homem é, eminentemente, um corpo físico que executa as funções do corpo social no qual está inserido (levando seus argumentos às últimas consequências, mas sem impossibilitar a criatividade fenomenológica). E isso é válido tanto para as macro-sociedades quanto para o posicionamento de status dos indivíduos em determinada sociedade. Assim, um mendigo é um mendigo e não a quintessência transcendental. A sociedade reservou-lhe este papel e ele não tem meio algum de libertar-se desta situação malfazeja (pelo menos não de forma autônoma, através de uma hipotética tomada de consciência; daí a assistência e a caridade). Sua razão (Razão, se preferirem) serve apenas para permiti-lo executar bem sua função de mendigo e não para possibilitá-lo enxergar o Belo ou lutar pela Liberdade (Parsons sabia do que falava, mas reservo-me a crítica à sua defesa moral do funcionalismo). Não que ele não tenha desejos e sonhos, mas estes serão de um tipo diverso do que os cientistas sociais e filósofos sempre pensaram, a partir de sua noção da unicidade da humanidade. Lévi-Strauss nos mostra, sim, que a humanidade é uma só, mas o próprio acrescenta que essa unicidade e igualdade são uma unicidade e igualdade originais, que possibilitam, contudo, fins completamente diferentes (em sentido diferente do advogado por Locke). O mendigo não é rei, efetivamente.

Contudo, a ilusão racionalista-iluminista sustentou um ideal de elevação, que incitava a humanidade à luta em busca do Belo e do Bom. Tal busca engendrou uma sociedade onde os homens-bicho continuavam a existir, mas o Estado de Bem Estar Social, o socialismo revolucionário, as lutas sócio-culturais dos jovens e das mulheres e outras forças sociais pareciam mostrar que a efetivação da ilusão era questão de tempo. A descoberta de que a ilusão era verdadeiramente uma ilusão afetou ânimos subjetivos e objetivos e tudo se inverteu. O reconhecimento de que o Homem é apenas homem e, não raro, homem-bicho, levou este último a ser o novo ideal a ser buscado. Daí a difusão deste novo modelo em suas diversas variáveis: o homem-bicho que vê um produto na televisão e sente ânsia consumista; o homem-bicho político generalizadamente corrupto; o homem-bicho trabalhador de renda baixa fã de Hebe Camargo; o homem-bicho intelectual mistificador; o homem-bicho quero apenas sexo, cerveja e futebol; o homem bicho detesto ler e vou me formar sem nunca ter lido um livro inteiro; o homem-bicho, o homem-bicho, o homem-bicho... São centenas, milhares, milhões de tipos de homens-bicho. E talvez cada ser humano vivo (ou talvez fosse mais pertinente usar aqui o termo não-vivo de Guy Debord, fazendo referência ao vivo objetificado, pouco diferenciado do morto) seja um tipo original de homem-bicho. É o que Baudrillard chama de originalidade da vacuidade absoluta.

As críticas estrutural e pós-moderna nos livraram da ilusão racional-iluminista, mas ao não saber aproveitar o que de bom havia, nos deixaram em um deserto do Ser, onde o homem-bicho vagueia catando comida entre os detritos.



(Nota de encerramento: obviamente não estou creditando a desertificação do existente à duas teorias sociais, o que acabaria por ser um tipo de idealismo neo-hegeliano que defende a racionalidade do Real; apenas demonstro um aspecto teórico dentre as diversas dimensões que, somadas, podem fornecer uma imagem deste Real, através de uma aproximação ideal-típica.)



10.7.06

Citações - ou: é mais fácil deixar que falem por mim...



"É preciso combinar o pessimismo da razão com o otimismo da vontade.
Sou um pessimista pela inteligência mas um otimista por desejo".

Com esta frase Antonio Gramsci conseguiu dizer o que eu não encontrava palavras para fazê-lo sucintamente. Mas era justamente a idéia que eu defendia ao dizer que a realidade aterradora da contemporaneidade espetacular não deve nos impedir de lutar. Saber que se está derrotado não é motivo suficiente para a resignação, pois os desejos são tão válidos quanto a razão. Talvez por esse motivo um ser consciente de que a morte por um predador é eminente continua a se debater e a lutar pela sobrevivência. Além da Razão, a Vida é o valor supremo.

Some-se a isto o que nos dizia Victor Hugo:

"Uma sociedade de carneiros acaba por gerar um governo de lobos"

e assim teremos diversos motivos para a não-contemplação passiva...




1.7.06

Errata

Desculpem-me.
Por um momento pensei ter algo a dizer.

27.6.06

O que é língua?

  1. O que é língua?

A língua é um sistema de signos. É a forma humana e social de comunicar idéias através de um todo organizado de diferenças. Esse todo organizado é, por sua vez, um sistema abstrato de distinções, abstrato posto que os significantes lingüísticos e mesmo os significados não existem na coisa em-si e de distinções posto que só sabemos que algo é uma coisa porque não é outra. A língua é constituída arbitrariamente por convenções sociais e, portanto, tem origem difusa e coletiva. Também se encontra ao nível da potencialidade, posto ser uma faculdade que ultrapassa a execução efetiva no ato comunicativo, o que possibilita as transformações históricas da língua. Enquanto fato social, a língua não está em nós, mas entre nós, o que pode ser exemplificado no fato, sensorialmente falando, de que o processo da pessoa x falar é distinto do processo da pessoa y ouvir. Contudo, a língua é mais do que uma forma de comunicação e, mais significativamente, enquanto tal é falha, pois gera o dissenso interpretativo. A língua configura o mundo, constrói o real. Aqui podemos recorrer ao auxílio de Wittgenstein, para quem o limite de nossa racionalidade é o limite do nosso alcance lingüístico.

Isto foi o que eu respondi ao meu professor de Antropologia Simbólica. Fiquei chocado quando uma mamãe explicou ao pequeno filho que língua era o que ele usava para chupar pirulito.

16.6.06

Manifesto por uma nova Sociologia


É cedo para se tecer uma crítica à vida, mas já me preparo para a missão metafísica com a qual me honrou a existência. Preparo-me, pois sou cônscio da grandeza da tarefa. Uma nova sociologia desponta dentre a celeuma de neurônios que jaz em meu espaço cranial: a Sociologia da Vida. Basta de Sociologia dos moradores do subúrbio ferroviário, sociologia dos vendedores ambulantes, sociologia dos empresários calçadistas, sociologia do circo picolino... Basta de sociologia marxista, weberiana, durkheimiana... Quero a Sociologia da Vida! Nesta nova subdivisão especializada da ciência social encontrarão ocaso todas as especializações e subdivisões. É hora do Uno além do bem e do mal, do reencontro dos saberes em vista do surgimento do novo ser desalienado de si mesmo através do conhecimento de sua realidade estrutural circundante e de sua potencialidade criativa. A Sociologia da Vida é intrinsecamente subversiva, posto que destrói mitos oriundos da mediocridade e da alienação especializada (especialização alienada?). A Sociologia da Vida desmascara sociólogos diplomados doutores e grão-vizires (my final bow) que sabem analisar a micro-estrutura de um terreiro de candomblé, mas não sabem porque este se encontra inadvertidamente em um bairro periférico. "Me desculpem, é que minha especialidade não é esta..." A Sociologia da Vida é o macro e o micro, é um e outro, a afirmação e a negação, pois é um Tudo-histórico e contextualizado, donde se tiram conclusões a-históricas e metafísicas socialmente construídas. Não se trata de um retorno às grandes teorias sociológicas holísticas e teleológicas, mas de uma tentativa de início de um ponto final à mediocridade que assola nossa contemporaneidade. É a introdução da poética na Academia. É a introdução do vivo na sociologia, onde o não-vivo sempre reinou triunfal. É a construção de uma imagem dinâmica e artística em folhas de papel. A contemporaneidade massacra com sua petulância arrogante e repulsivamente fétida. A Sociologia da Vida não altera a situação social, mas como um Dom Quixote pós-moderno nos mostra que ainda há luta, mesmo que, por enquanto, não haja vitória...

15.6.06

Carta do Cravo

Sim, minha Pétala querida, a noite é longa.

Mas nela dormimos e descansamos do mal acumulado do viver dias um após o outro, distanciando-nos dos sonhos sonhados.

A noite é longa, mas mais longa é a vida inexorável.

Nesta vida autoritária e que não nos dá a opção efêmera do não-viver, resta-nos viver, e só bem adiante o não-viver absoluto e eterno.

Neste viver antes do não-viver final, desejo algum dia te fazer companhia uma noite longa adentro.

Apenas eu e você, cercados pela noite e pela Vida.

31.5.06

Did you see the stylish kids in the riot?

By The Libertines


Did you see the stylish kids in the riot?
We were shovelled up like muck
Set the night on fire
Wombles bleed truncheons and shields
You know I cherish you my love

But there's a rumour spread nasty disease around town
Caught round the houses with your trousers down
A headrush in the bush
You know I cherish you my love
Oh how i cherish you my love

Tell me what can you want now you've got it all
The whole scene is obscene
Time will strip it away
A year and a day
And Bill Bones
Bill Bones knows what I mean
He knows it's eating, it's chewing me up
It's not right for young lungs to be coughing up blood
Oh it's all
It's all in my hands
And its all up the walls

Well the stale chips are up and the hopes stakes are down
Its these ignorant faces that bring this town down
Yeah I sighed and sunken with pride
I passed myself down on my knees
Yes I passed myself down on my knees


Did you see the stylish kids in the riot?
You know I cherish you my love






15.5.06

De onde vem a contestação no Brasil...




Na França os estudantes tocam fogo. Na Colômbia guerrilheiros das FARC tocam fogo. No Iraque a Resistência toca fogo. Na Argentina a classe média toca fogo. Na Bolívia os índios tocam fogo. Cada qual com seus motivos políticos e ideológicos de contestação social. No Brasil não temos nada que preste na sociedade com força política de contestação. Resta-nos o PCC pra tocar fogo por aqui. Pobres de nós. Só sinto-me reconfortado pelas centenas de moções de repúdio que já começaram a aparecer... OAB, PSTU, UNE, CUT, MST... Moções e mais moções para serem arquivadas em atas burocráticas... O Ministério da Desgraça adverte: comprem extintores de incêndio!
PSTU, UNE, CUT, MST, PT, PC do B, PSOL? Nada disso. Se existem organizações que podem acuar a ordem estatal brasileira são o PCC e o Comando Vermelho. Se estes comandos mafiosos deixassem de lado as disputas de mercado consumidor e se aliassem politicamente poderíamos ter um Estado-terrorista-narcotraficante. Se isso não ocorre é porque o crime organizado não tem interesse em acabar com toda a ordem, pois tem tentáculos dentro dela que mantém suas margens de lucro. Estes comandos são, sim, organizados e são, sim, políticos. No entanto, são muito mais organizações econômicas. Quem acreditar em Deus é bom agradecê-lo por esta benção. A desgraça poderia ser pior. Obviamente não estou desesperado. Afinal o Brasil é o país do futuro...
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PS. Da sabedoria popular na internet: "A principal exigencia do PCC é que o Corinthians volte para libertadores..."




7.5.06

Entre a revolução e a Coca-Cola

Ribeiro, Renato Janine. Política e Juventude: o que fica da energia. In: Juventude e Sociedade. Regina Novaes e Paulo Vannuchi (Orgs.). São Paulo. Fundação Perseu Abramo. 2004. (excertos)
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Nem todas as juventudes se distinguiram, historicamente, pela disposição a contestar o mundo em que nasceram. Esse é provavelmente um fenômeno moderno, assim se estendendo o período que vem desde a Revolução Francesa. A sensação ao longo do século XIX era que cada vez mais havia uma oposição entre o novo (liberdade, democracia) e o antigo (servidão, preconceito, mentira). Desde então, a juventude tem sido um valor importante. Lembremos que no século XVIII a nobreza usava perucas empoadas – isto é, os jovens faziam-se de velhos, portando desde cedo cabelos brancos; a partir da Revolução Francesa, contudo, ser moço passa a ser algo positivo. Ora, se para ser feliz é preciso que coincidam nossos desejos com a realidade, o que desde 1789 se tentará é não mais desistir dos desejos, mas modificar o mundo. (p. 22-23) A invenção e a inovação passam a ser prezadas e, com elas, a juventude. Não estranha, então, que fazer a revolução tenha sido, durante boa parte do século XX, uma das grandes vocações dos jovens. É certamente este quadro que dita nos últimos duzentos anos o papel da juventude. Uma certa fase da vida, quando já se saiu da infância e ainda não se entrou na fase marcada pelas exigências do casamento, da paternidade, da produção, desenha um espaço livre para a busca do próprio caminho e a contestação sistemática do que até hoje funcionou. Esses dez a vinte anos são assim fundamentais para cada um, na sua escolha do rumo a tomar na vida. Mas também constitui um importante fenômeno social, pois uma proporção significativa da população está sempre nesse limiar, nesse momento indeterminado de passagem. E essa parcela da população assume uma posição de proa, com um peso no conjunto das coisas que seu número não ditaria. É precisamente sua indeterminação que faz – ou fez – dela o emissor por excelência dos discursos alternativos. É também essa indeterminação que faz dela o destinatário por excelência das peças publicitárias. Sua posição pendular favorece, assim, tanto a emancipação como a subordinação. Isso quer dizer que desde metade do século XX os jovens são disputados por duas forças importantes e mais ou menos antagônicas: por um lado, a idéia da revolução, que se coloca à esquerda dos partidos comunistas, tidos como acomodados e conservadores, e, por outro lado, a publicidade e o consumismo. (p. 24) Jean-Luc Godard sintetizou bem essas duas vias ao chamar, em seu filme Made in USA, os jovens parisienses dos anos sessenta de “filhos de Marx e da Coca-Cola”. Na teoria elas se opões, mas na prática, na realidade, têm lugar inúmeras combinações. Se já nos anos sessenta isso era verdade, imagine hoje, quando se nota uma vitória do consumo sobre a política da esquerda revolucionária. Nossa publicidade vende, agora, a eterna juventude. O desejo é locado em pessoas jovens, de boa saúde e altamente sexuadas. Não saber o que se deseja, imaginar-se desejando o que na verdade não tem a ver com você: eis uma forma de ilusão tipicamente atual. É a terra de ninguém do desejo.

5.5.06

Redenção


Torno-me ébrio em minha loucura contemplativa
Mas a realidade sempre retorna feroz
Montada no dorso de uma ressaca

Enquanto isso, sob a Lua há um mundo
E neste mundo há loucuras bem maiores que a minha
Loucuras que não se curam com ressacas

Na loucura há sofrimento
No sofrimento há desejos frustrados
No consumo repousa a redenção

29.4.06

Just another soldier on the road to nowhere...

"Depois de estar cansado de procurar
Aprendi a encontrar
Depois que um vento se opôs a mim
Navego com todos os ventos..."
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Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência
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Nada mais reconfortante que trilhar o próprio caminho, mesmo sabendo que ele não leva a lugar algum.

24.4.06

Hegel e a decadência da Filosofia

Hegel fala besteira e eu conserto.
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"Toda objetividade é subjetiva - posto que necessariamente subjetivada. Mas nunca uma subjetividade é objetiva - por mais que objetivada" ao invés de "O real é racional e o racional é real".

15.4.06

Dom Quixote

Tomo I

Todo Dom Quixote necessita de uma dama a qual amar
A mim resta a amarga procura solitária
De uma companhia feminina
Ao cabo desta a solidão se esvai
E o Dom Quixote também


Tomo II

Todo Dom Quixote necessita de um Sancho Pança
Para com ele compartilhar os momentos de angústia
E também para se embriagar de vinho, quando feliz
Eu, no entanto, não tenho um Sancho Pança neste momento
Tampouco sou Dom Quixote

Garoto abordado por seguranças some de shopping


Shopping Iguatemi: meninos pedem dinheiro em frente à loja Americanas
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Kleyzer Seixas e Tássia Novaes, do A Tarde On Line
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Parecia ser mais uma sexta-feira de movimento comum no Shopping Iguatemi, o maior da cidade, quando lojistas e consumidores que estavam no piso térreo próximo à loja Americanas ouviram gritos. “Não fiz nada, me solte”. A voz era de um menino negro, franzino, que aparentava ter 13 anos. O garoto foi abordado por quatro seguranças, que o arrastaram pelo corredor em direção à sede do Juizado de Menores. Seguiu aos gritos como se estivesse se defendendo de uma acusação. A reação chamou atenção de quem estava no local. A cena retratada acima ocorreu por volta das 11h45, segundo relato de lojistas que falaram à reportagem do A Tarde On Line sob a condição de ficarem no anonimato. “Ele estava em frente às Americanas, vi quando os seguranças se aproximaram e o puxaram pelo braço”, disse uma vendedora.“Estava vestido com camiseta e bermuda, parecia ser um garoto pobre”, contou um consumidor que também presenciou a cena. “Não parou de berrar, era nítido que estava com medo”, acrescentou outra vendedora. Procurada, a Segurança do shopping encaminhou a reportagem ao Juizado de Menores do Iguatemi. Perguntado sobre o caso, um funcionário negou que os seguranças tivessem abordado o garoto. “Não houve nenhuma situação atípica, não pegamos nenhum menor. O dia está tranqüilo”, garantiu o funcionário que se identificou apenas como Carlos. No mesmo local onde o garoto teria sido retirado pelos seguranças, dois meninos e uma menina pediam dinheiro às pessoas que saiam da loja de departamento. Vestidos com roupas simples e com adereços da páscoa na cabeça, eles se esforçavam para driblar os seguranças do shopping, enquanto abordavam os consumidores. “Eles [os seguranças] não gostam que a gente fique aqui. Mas tenho que completar o gás da minha casa”, justificou uma menina de 11 anos. Os três moram no bairro de Fazenda Coutos e vão ao diariamente ao Iguatemi, onde fazem ponto para garantir um pouco do sustento. “A gente vem na ponga [carona] nos ônibus porque não temos como pagar a passagem”, disse o mais novo, de 10 anos. Questionados sobre a confusão, os três garotos contaram que costumam apanhar dos seguranças quando são levados ao Juizado do shopping. “Eles [os seguranças] batem de tubo, para não deixar marcas”, relatou uma garota que já foi levada mais de dez vezes ao órgão. “Perdi as contas de quantas vezes fui parar lá [no Juizado], sempre apanho”, contou um deles. A abordagem de garotos menores de idade que ficam perambulando no piso térreo do Iguatemi sem os pais é uma prática comum. "Pode prestar atenção, sempre tem uns meninos na porta das Americanas. Eles não sobem para os outros pisos", disse uma vendedora. Os garotos tornam-se um empecilho às pessoas que fazem compras. A “faxina” fica por conta dos homens que fazem a segurança do shopping, dizem os lojistas.
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Enfim uma notícia extemporânea no jornal...Por mais que esta não fosse a intenção...E por mais que não seja um fato a se comemorar...

9.4.06

Me desculpa, eu existo!

Estávamos eu e Pedro no bar, tomando cerveja sábado à noite e conversando sobre Guy Debord, Karl Marx, Nietzsche e Schopenhauer, enquanto a nossa volta, Freud explica, todos "enchiam a cara" como forma de facilitar possíveis aproximações de cunho sexual (afinal, é sábado à noite). Percebíamos, eu e Pedro, o quanto éramos dissonantes em relação ao resto das pessoas no bar. Mas esta fantasia de distanciamento social durou pouco. De repente o materialismo histórico venceu! Achávamos-nos dissonantes por mera divergência das outras pessoas no plano das idéias, mas a ilusão cessou quando a verdadeira dissonância apareceu na nossa frente...

Uma deficiente auditiva de baixa renda perturbou nossas divagações filosófico-políticas... Mas o mais assustador é que ela não disse uma única palavra (talvez porque fosse muda, mas acredito que mesmo podendo nada diria), deixou uma bugiganga sobre a mesa com o intuito de vendê-la e mais um desgastado cartão de apresentação. Nada demais, visto ser esta uma cena com a qual nossos sentidos já estão tão acostumados de perceber cotidianamente que nosso mais profundo consciente, sub-consciente e até inconsciente cauterizaram e não mais geram qualquer pensamento a respeito da situação. A questão, no entanto (olhem o cartão atenciosamente), é que a pessoa já pedia desculpas antes de qualquer coisa. Imaginem uma existência tão absolutamente miserável que um ser sinta-se impelido a pedir desculpas por estar vivo. Ela sabia que não nos atrapalhava em nada, mas seria melhor se não existisse. Sabia (e sabe) que é completamente dispensável no mundo e que morrendo, ninguém dará pela falta. Imaginem seu cotidiano: acorda e pensa "lá vou eu atrapalhar os outros de novo". A tristeza é a regra em sua vida e ainda pede desculpas por isso! "Me desculpa, eu sou surdo" "Me desculpa, eu nasci assim, destinado a sofrer todos os tipos de estigmas sociais" "Me desculpa, mas preciso comer" "Me desculpa, me desculpa, me desculpa"...
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Mas o pior de tudo é que não adianta implorar: a sociedade não desculpa!
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...E o pequeno Mickey alegre disfarça a exploração e o sofrimento...

7.4.06

A prioris




Duas características básicas têm o ser humano:
Uma, nos ensinou Hegel, é o medo da morte
A outra, nos ensina a História, é o medo da vida






1.4.06

Divagações Extemporâneas

O mundo não percebe minha existência limitada
No entanto, extrapolo os limites da consciência
E mergulho nas profundezas iluminadas da inconsciência vã

Frases vazias me ocorrem agora
Para me fazer lembrar
Do meu mais profundo sentimento de solidão

Forjo-me livre, pois estou só
E a liberdade não é nada mais que isso
E por não possuir semelhantes Deus é livre

A felicidade é o esconderijo da angústia
Onde todos os demônios se encontram
Pois apesar de decaídos podem alegrar-se em orgias

Na solidão de sua liberdade Deus tem sua angústia
Na felicidade pecaminosa os decaídos se vingam
E em meu cotidiano inexisto

30.3.06

Política espetacular ou Pós-política?

O exercício universalizado do voto é um direito conquistado historicamente, como gostaria de afirmar o Norberto Bobbio, mas nada é tão doce assim. A contrapartida do exercício deste direito atualmente é legitimar a democracia espetacular, o sistema conservador do menos pior. O mais importante não é escolher dentre candidatos impostos com programas similares com maquiagens diferenciadas, mas ter o poder de escolher quem se quer escolher. Esse era o valor fundamental da democracia elitista do liberalismo clássico, mas que com o surgimento da democracia de massas foi deixado estrategicamente para trás, afim de evitar que candidatos populares com programas transformadores pudessem ser eleitos legitimados pelas regras criadas pelos próprios liberais. Hoje temos então a democracia técnica e o esvaziamento da esfera de discussão da Política. Os projetos com viés transformador são automaticamente excluídos por serem "inviáveis tecnicamente", como se a própria inviabilidade técnica já não fosse em si mesma fruto de uma ordem política. É disto que se trata e não de exercer direitos deturpados para se acreditar cidadão, quando não passamos de sujeitos em processo de objetificação pelo sistema capitalista espetacular.

24.3.06

Depois da luta vem a luta!


Depois de cerca de três anos de militância política, fui surpreendido por uma visão ainda mais profunda da realidade, somando-se a isso a desprezível experiência do governo Lula. Esses fatos fizeram-me distanciar do esquerdismo político tradicional. Mas uma vez consciente, a consciência persegue ad infinitum. Não é possível voltar ao estado disforme da massa, muitas vezes mais desejável do que a consciência que nos afasta de prazeres típicos da não-consciência. No máximo podemos esconder nossa consciência atrás de um inconsciente artificial, projetado para este fim e sobre o qual tentamos construir um novo consciente. Mas quando menos esperamos o antigo consciente nos dá uma mordida.
Apesar da manutenção involuntária da consciência é-me difícil enxergar alternativas políticas coletivas na atual configuração social. E aqui uso a ajuda de Nietzsche, para o qual todo empreendimento social é feito "do esterco sujo", ou seja, dos homens.
No entanto fiquei pensativo com a história do grupo Facção Exército Vermelho (Baader-Meinhof ou RAF), na Alemanha dos anos 70 e 80. "Quem não luta morre a prazo" é a expressão do pensamento dos integrantes deste grupo guerrilheiro-terrorista. O RAF lutava pelo socialismo em um contexto de guerra-fria, onde, mesmo com stalinismo e tudo, a revolução parecia estar às portas, aparentemente referendando a inevitabilidade comunista da qual Marx falava no Manifesto e não só nele. Suas táticas eram brutais e talvez até espetaculares, mas a determinação na luta pela liberdade os diferenciava de qualquer outro grupo guerrilheiro conhecido, pois lutavam coletivamente pela libertação individual. Também não aderiram ao messianismo das vanguardas proletárias que lutavam para libertar a classe em-si alienada, mas adentravam no aparato estatal e davam continuidade a estrutura de privilégios e desigualdade. O RAF lutou obstinadamente até o ano de 1992, quando, sem lastro de utopia devido ao fim do socialismo real, decidiram que o grupo não mais tinha razão de ser, pediram anistia ao Estado burguês em nome da deposição das armas e foram cada um cumprir o seu destino.
Fiquei pensando no processo como um todo: a alienação, a consciência, o desespero, a tática e o ceticismo. Lembrei-me de outra palavra de ordem do RAF, que parece ser uma atualização existencialista do "Proletários de todo o mundo, uni-vos": "Que todos os desesperados se reúnam! Aqui termina o desespero e começa a tática!" A tática, contudo, resultou em nada (ou pouco). Enfim, encontrei abrigo no Fernando Pessoa (Álvaro de Campos, pra ser mais exato): "Estou cansado, pois a certa altura a gente tem que estar cansado!". Parece que o processo se completou também para mim. Tá na hora do eterno retorno!

17.3.06

O Efêmero Fim de Todas as Coisas

Acabou-se o Amor
E o Ódio

Adeus à Esperança
E à Descrença

O fim do Ser
E do Não-Ser

Não há música lá fora
Tampouco silêncio

No fim restamos eu
E o mundo inteiro

12.3.06

Pio

Noite
Mas dentro da noite Madrugada

Vida
Mas dentro da vida Morte

Descanso dos Injustos
Aflição dos Justos

Gira, mundo
Mas gira devagar, pra eu não ficar tonto

9.3.06

O fim da inocência


Eis que nasceu há pouco tempo o bebê que levou o mundo a atingir o número exato (não há engano... o número é exato!) de 6.500.000.000 de parasitas humanos na superfície terrestre.
Com tão inusitado fato me chegando aos ouvidos quando estava ocupado coçando a região genital (não façam essa cara de "que baixaria!"... todos coçam suas regiões genitais), vi-me, de um repente, mergulhado involuntariamente em questionamentos existenciais. Afinal de contas, são 6.500.000.000 de pessoas... Quantas pessoas interessantes existem no mundo e que eu nunca saberei da existência? Quantos prováveis Marx, Nietzsche, Einstein morrerão analfabetos na África? Mas, quando sentia que me perderia nesses devaneios uma imagem me tocou... O bebê estava chupando bico! Tentei me lembrar de mim mesmo chupando bico, mas foi em vão. O máximo que consegui recordar foi da vez em que defequei nas calças na casa da minha avó.
O ser número 6.500.000.000 do mundo e já assim, derrotado, sem utopias, vencido pelo ceticismo. Este bebê, posso vos afirmar, já não acredita em mais nada: deus, cidadania, o mundo será melhor etc. Senti seu grito abafado de "não me venham com metafísicas!". Este pequenino ser, que nasceu ouvindo a história de que era nascido livre, que viveria em um mundo democrático, chegou a, piamente, acreditar nisto. Posso o imaginar em um dia de verão a se debater com os adesivos da fralda (sua mão não tem muita coordenação ainda), pois queria estar livre de manufaturas, livre das fraldas, queria simplesmente que um pouco de ventilação lhe chegasse no pequeno ânus suado. Não conseguiu tirar as fraldas. Mas sabia que havia uma instituição maior, mais poderosa e anterior a si mesmo que existia para lhe ajudar, para manter a democracia e garantir seus direitos. O Estado em seu estágio primeiro. Chorou por um bom tempo e em tom agudo como forma de reinvidicação frente a este aparato racional-legal. O Estado tentou lhe compreender: verificou as fraldas, mas estavam limpas; fome não era pois o bebê estava bem alimentado. O que poderia ser, então? Ah, imbecilidade do mundo inteiro! Será que não percebem que seres humanos são muito mais que suas necessidades fisiológicas? Tudo que o pequenino ser número 6.5000.000.000 do mundo queria era um pouco de ar na traseira! Mas o Estado não entendia sua linguagem. Não podia conceber que se reinvidicasse mais do que as necessidades fisiológicas. Não podia entender que ainda houvesse quem pudesse sonhar, por mais que fossem sonhos simples, como um pouco de ar na bunda em um dia de sol! A providência tomada pelo Estado foi fulminante: o bico! Cala-te, pequeno ser! Toma isto e dorme! Ali, naquele momento, o pequeno ser entendeu que só lhe restava tentar tirar o melhor proveito possível de sua ignóbil condição de dominado!