25.7.06

A vida como ela seria, mas não é


“Nos perguntam: a vida privada está privada de que? Muito simples: da vida, que está cruelmente ausente. Estamos privados de comunicação e da realização de si mesmos até os limites do possível. Dever-se-ia dizer: privados de fazermos pessoalmente a própria história.”

Guy Debord em Perspectivas da transformação consciente da vida cotidiana

Esse trecho do texto de Debord me levou à alguns devaneios filosófico-sociológicos acerca da identidade (o velho quem-sou-eu-onde-estou). De fato, como pode a vida estar privada da vida? O equívoco pode estar na perspectiva adotada, pois se pensarmos que as coisas são o que são e não aquilo que gostaríamos que fosse, a não-vida denunciada por Debord tornaria-se facilmente o tipo mais banal de vida real.

Daí podemos transpor o modelo para a identidade do indivíduo. Vejam este trecho de um soneto de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa):

“Nem nunca, propriamente reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.”

A sociedade ocidental, fortemente lastreada na idéia de indivíduo, sempre foi acometida por questionamentos acerca do Ser. Ante a forte pressão para se adaptar aos modelos comportamentais da sociedade, bem como à sua visão de mundo (moral, estética, ideológica etc) e ao mundo do trabalho, o indivíduo, então, entra em uma espécie de crise existencial permanente e latente: será que sou-me? Ou sou apenas o que os outros querem que eu seja? Ou ainda: sou apenas aquilo que, em minha mediocridade, consegui ser?

A questão é: se você é o que os outros querem que você seja, então, não é exatamente isto que você é? Ou haveria algum “eu” escondido numa caverna platônica esperando vir à tona? Não acredito na segunda hipótese. O contato humano nos corrompe, no sentido de que, ao interagirmos, já somos uma síntese entre sonhos e vontades e aquilo que o realismo cotidiano nos permite concretizar. O sonho não é destruído, mas apenas confrontado com a realidade. E somos tanto idéia quanto aquilo que efetivamos. Nesse sentido, a vida verdadeira à qual Debord se referia é a vida que, para ele, seria a mais desejável. A vida a qual ele chamou de não-vida é tão vida quanto, mas apenas confrontada com o deserto do real. Assim também em relação à crise enfrentada por Álvaro de Campos. Ele poderia até não querer sentir o que sente, mas que sente não há dúvidas. Somos o nosso cotidiano, os sonhos frustrados, somos não apenas o que somos mas também aquilo que queríamos ter sido mas não fomos! E quanto queremos ainda ser mas temos plena consciência de que nunca seremos... E a isso chamemos vida!

24.7.06

Um pouco do pensador marginal Guy Debord



A crise atual da vida quotidiana se inscreve nas novas formas de crises do capitalismo, formas que passam desapercebidas por quem se obstina em calcular em função do vencimento clássico das próximas crises cíclicas da economia.

A desaparição de todos os antigos valores, de todas as referências da comunicação anterior ao capitalismo desenvolvido, e a impossibilidade de substituí-los por outros, quaisquer que sejam, sem conseguir previamente o domínio racional, tanto na vida quotidiana como em qualquer outro lugar, das novas forças industriais que cada vez mais escapam mais a nosso controle; estes fatos não só engendram a insatisfação quase oficial de nossa época, insatisfação particularmente aguda na juventude, mas ainda mais no movimento de auto-negação da arte. A atividade artística sempre foi a única que prestou contas dos problemas clandestinos da vida quotidiana, mas de uma maneira oculta, deformada, parcialmente ilusória. Diante de nossos olhos, já existe o testemunho de uma destruição de toda expressão artística: é a arte moderna.

Se consideramos em toda sua extensão a crise da sociedade contemporânea, não parece que o tempo de ócio pode ser considerado ainda como uma negação do quotidiano. Admitiu-se aqui a necessidade de "estudar o tempo perdido". Mas vejamos o movimento recente dessa idéia de tempo perdido. Para o capitalismo clássico, o tempo perdido é o tempo exterior à produção, à acumulação e à economia. A moral laica que se ensina nas escolas da burguesia implantou essa norma de vida. Entretanto por um ardil inesperado, o capitalismo moderno necessita acrescentar o consumo, "elevar o nível de vida" (tendo em mente que esta expressão carece rigorosamente de sentido). E dado que, ao mesmo tempo, as condições de produção, compartimentada e cronometrada até um grau extremo, se tornaram completamente insustentáveis, a moral que já abriu passagem na publicidade, na propaganda e em formas do espetáculo dominante, admite francamente que o tempo perdido é o tempo de trabalho, que já unicamente se justifica pelos diversos graus de lucro que procura, o qual permite comprar o repouso, o consumo, o tempo de ócio - ou seja, uma passividade quotidiana fabricada e controlada pelo capitalismo.

Nos perguntam: a vida privada está privada de que? Muito simples: da vida, que está cruelmente ausente. Estamos privados de comunicação e da realização de si mesmos até os limites do possível. Dever-se-ia dizer: privados de fazermos pessoalmente a própria história.


Guy Debord
Trechos de "Perspectivas da transformação consciente da vida cotidiana"

18.7.06

Sintomas de solidão e bem-estar

Estando só sinto-me mal

Porém, estando só sinto-me bem

Pois efetivamente sinto-me

E sento, sentindo-me

Sem sentir, sentado

17.7.06

O bicho - E o mendigo?

Tratamos de épocas históricas e de como homens-bichificados podem rebelar-se. Mas voltemos à temática do mendigo. Como ele pode rebelar-se? Ou seria mais pertinente a questão: quer, ele, rebelar-se? Sim, pois, de fato, o ato da rebeldia é sempre um luxo, ao qual um mendigo (e falo em mendigo enquanto arquétipo do não-vivo debordiano) não pode ceder. Antes do luxo vem a sobrevivência. Nesse sentido, a bichificação é uma arma inconsciente para a manutenção da vida. Em termos dos seres que podem se dar ao luxo da rebeldia, contudo, a bichificação é alienação de si mesmo, no sentido de remeter à outros (e esse outro poder ser as redes de poder e dominação da sociedade) a gerência da própria vida. Em um momento de hegemonia do princípio de mercado sobrepujando todas as demais sociabilidades, a forma mercadoria é fetichizada ao extremo e surge a sociedade do espetáculo (Debord) ou a economia política do Signo (Baudrillard). Nesse caso, a bichificação é não-vida. A sociedade passa a ter a liberdade (hedonismo, consumismo etc) enquanto princípio e a dominação (monopólios de mercado, indústria cultural etc) como regra. Enquanto isso, o mendigo mendiga.

16.7.06

O bicho – Possibilidades emancipatórias

Bichificação é um processo recorrente na humanidade, através do qual as massas se tornam massas e as elites permanecem elites. O homem-bicho é o ser cotidiano: raso, mas homem. Mas seria este argumento suficiente para promover a contemplação passiva ao nível de ideal a ser buscado em nome de um realismo inquestionável acerca da condição ontológica do ser? A ilusão racional-iluminista não nos deixou nenhum legado a ser conservado? E como a bichificação afeta o mundo da vida cotidiana? Não seria possível subverter o processo a partir desta esfera? Não se trata de substituir a sociedade dos homens-bicho pela comunidade platônica de filósofos, mas apenas de fazer dos homens-bicho homens-dançarinos, deslocando a proposta nietzscheana de seu caráter eminentemente aristocrático.

A história do século XX, a era dos extremos para Hobsbawn, serve-nos como paradigma do Abismo do qual Nietzsche nos avisava, estando de um lado a Fera e do outro o Além-do-Homem. Se, para além da esfera individual, transpomos este modelo para a configuração social, enxergamos a Fera enquanto totalitarismos, taylorismo/ fordismo, indústria cultural etc e o Além-do-Homem enquanto a utopia libertária que, por uns momentos, esteve ao alcance das mãos. Deste modo, por mais que a bichificação, segundo Schumpeter, mas não com estas palavras, seja ontológica à organização de sociedades complexas, existem níveis ou gradações para esta situação. Já se viveu uma época em que filmes de massa eram Casablanca e Histórias Extraordinárias (Poe by Fellini). O que, então, me faz contentar com Garfield e Independence Day? O nível (mediana, desvio-padrão etc) de bichificação na contemporaneidade pós-tudo é um exagero da condição humana elevado ao status de inescapabilidade. Apesar das visões catastrofistas baudrillardianas, podemos recuperar Nietzsche e Sartre para demonstrarmos a possibilidade fenomenológica da resistência. E ao ocorrer esta resistência individual à imbecilização coletiva, uma possibilidade social é também vislumbrada, pois se por um lado Lévi-Strauss está correto em suas afirmativas, também podemos nos apoiar em Marx: “os homens fazem a história tanto quanto esta os faz”. E é aí que a afirmação de Gramsci, já postada neste blog, adquire seu mais pleno sentido...

12.7.06

O bicho

O bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos

Quando encontrava alguma coisa
Não examinava nem cheirava
Engolia com voracidade

O bicho não era um cão
Não era um gato
Não era um rato

O bicho, meu deus, era um homem

Manuel Bandeira


Não é de hoje que a bichificação da humanidade ocorre. A filosofia racionalista e, posteriormente, a iluminista enxergavam uma quintessência transcendental no ser humano (tentativa pueril-histórica de lutar contra a bichificação), o que, de certa forma, trouxe à tona ideais a serem valorizados no campo das lutas políticas, como o grande ideal da igualdade. No entanto, tal posicionamento perante o mundo impedia estas filosofias de enxergar a distância entre Idéia e Real e, assim, elas compartilhavam do mesmo equívoco do idealismo.

O estruturalismo, principalmente a partir de Lévi-Strauss, nos blindou para estes excessos, nos mostrando que o homem é, eminentemente, um corpo físico que executa as funções do corpo social no qual está inserido (levando seus argumentos às últimas consequências, mas sem impossibilitar a criatividade fenomenológica). E isso é válido tanto para as macro-sociedades quanto para o posicionamento de status dos indivíduos em determinada sociedade. Assim, um mendigo é um mendigo e não a quintessência transcendental. A sociedade reservou-lhe este papel e ele não tem meio algum de libertar-se desta situação malfazeja (pelo menos não de forma autônoma, através de uma hipotética tomada de consciência; daí a assistência e a caridade). Sua razão (Razão, se preferirem) serve apenas para permiti-lo executar bem sua função de mendigo e não para possibilitá-lo enxergar o Belo ou lutar pela Liberdade (Parsons sabia do que falava, mas reservo-me a crítica à sua defesa moral do funcionalismo). Não que ele não tenha desejos e sonhos, mas estes serão de um tipo diverso do que os cientistas sociais e filósofos sempre pensaram, a partir de sua noção da unicidade da humanidade. Lévi-Strauss nos mostra, sim, que a humanidade é uma só, mas o próprio acrescenta que essa unicidade e igualdade são uma unicidade e igualdade originais, que possibilitam, contudo, fins completamente diferentes (em sentido diferente do advogado por Locke). O mendigo não é rei, efetivamente.

Contudo, a ilusão racionalista-iluminista sustentou um ideal de elevação, que incitava a humanidade à luta em busca do Belo e do Bom. Tal busca engendrou uma sociedade onde os homens-bicho continuavam a existir, mas o Estado de Bem Estar Social, o socialismo revolucionário, as lutas sócio-culturais dos jovens e das mulheres e outras forças sociais pareciam mostrar que a efetivação da ilusão era questão de tempo. A descoberta de que a ilusão era verdadeiramente uma ilusão afetou ânimos subjetivos e objetivos e tudo se inverteu. O reconhecimento de que o Homem é apenas homem e, não raro, homem-bicho, levou este último a ser o novo ideal a ser buscado. Daí a difusão deste novo modelo em suas diversas variáveis: o homem-bicho que vê um produto na televisão e sente ânsia consumista; o homem-bicho político generalizadamente corrupto; o homem-bicho trabalhador de renda baixa fã de Hebe Camargo; o homem-bicho intelectual mistificador; o homem-bicho quero apenas sexo, cerveja e futebol; o homem bicho detesto ler e vou me formar sem nunca ter lido um livro inteiro; o homem-bicho, o homem-bicho, o homem-bicho... São centenas, milhares, milhões de tipos de homens-bicho. E talvez cada ser humano vivo (ou talvez fosse mais pertinente usar aqui o termo não-vivo de Guy Debord, fazendo referência ao vivo objetificado, pouco diferenciado do morto) seja um tipo original de homem-bicho. É o que Baudrillard chama de originalidade da vacuidade absoluta.

As críticas estrutural e pós-moderna nos livraram da ilusão racional-iluminista, mas ao não saber aproveitar o que de bom havia, nos deixaram em um deserto do Ser, onde o homem-bicho vagueia catando comida entre os detritos.



(Nota de encerramento: obviamente não estou creditando a desertificação do existente à duas teorias sociais, o que acabaria por ser um tipo de idealismo neo-hegeliano que defende a racionalidade do Real; apenas demonstro um aspecto teórico dentre as diversas dimensões que, somadas, podem fornecer uma imagem deste Real, através de uma aproximação ideal-típica.)



10.7.06

Citações - ou: é mais fácil deixar que falem por mim...



"É preciso combinar o pessimismo da razão com o otimismo da vontade.
Sou um pessimista pela inteligência mas um otimista por desejo".

Com esta frase Antonio Gramsci conseguiu dizer o que eu não encontrava palavras para fazê-lo sucintamente. Mas era justamente a idéia que eu defendia ao dizer que a realidade aterradora da contemporaneidade espetacular não deve nos impedir de lutar. Saber que se está derrotado não é motivo suficiente para a resignação, pois os desejos são tão válidos quanto a razão. Talvez por esse motivo um ser consciente de que a morte por um predador é eminente continua a se debater e a lutar pela sobrevivência. Além da Razão, a Vida é o valor supremo.

Some-se a isto o que nos dizia Victor Hugo:

"Uma sociedade de carneiros acaba por gerar um governo de lobos"

e assim teremos diversos motivos para a não-contemplação passiva...




1.7.06

Errata

Desculpem-me.
Por um momento pensei ter algo a dizer.