26.8.06

Pela repolitização da política

Do Folha de São Paulo (25/08/06): “Em palestra, Marilena Chauí defende veia conflituosa da democracia”. E o texto do diário continua: “A filósofa Marilena Chauí defendeu anteontem, no Rio, durante sua participação no ciclo de debates ‘O Esquecimento da Política’, que democracia, mais que respeito às leis estabelecidas, é conflito. ’A democracia é a sociedade aberta ao tempo, ao possível, ao novo. Não está fixada numa forma para sempre determinada’, disse Chauí durante sua palestra. ‘Podemos afirmar que a democracia é a única forma da política que considera o conflito legítimo’. O argumento que o filósofo Baruch de Espinosa (1632-1677) usou para afirmar a superioridade da democracia sobre qualquer outro regime se contrapunha à definição liberal da experiência democrática. Para os liberais, disse Chauí, a democracia ‘é o regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais’, o que redundaria na tentativa de conter os conflitos sociais. Para Espinosa, afirmou Chauí, só a democracia permite aos indivíduos a afirmação de suas virtudes, sem medo”.

Atualmente, vivemos, contudo, numa época em que a política se despolitiza, tornando-se espetáculo. O show político - oriundo das propagandas midiáticas, das pesquisas de opinião e do marketing político – cria uma convergência entre opostos no campo ideológico. Os programas políticos tornam-se equivalentes e todos, sem exceção, são submetidos à lógica da política da nulidade, onde é proibido defender qualquer projeto, mesmo no âmbito democrático, que tenha como foco a mudança. O horário eleitoral é prova da convergência política da nulidade total: candidatos sorrindo, assemelhando-se ao Exterminador do Futuro, beijando crianças e fazendo os mesmos discursos preparados pelos marketeiros. As diferenças passam a ser mínimas entre os partidos e projetos políticos: a esquerda e a direita estão submetidas à despolitização da política, uma vez que ambas já se submeteram totalmente ao capital. E não proponho aqui uma revolta de tipo marxista-leninista contra o capital; apenas a recuperação da política de sua capacidade de intervenção na realidade de forma mais soberana. Na era dos extremos, o século XX, era a política quem definia as diretrizes sociais. Se o século XX nos trouxe experiências amargas, contudo nos mostrou que podemos construir a civilidade: cidadãos discutindo e construindo seus rumos. Com todos os conflitos aí envolvidos. Precisamos recuperar esta dimensão do conflito democrático como forma de repolitizar a política. Como? Não sei. A realidade nos induz a uma perspectiva atroz. Mas mantenho minha opinião, na falta do que fazer. Chega por hoje. Vou jogar dominó.

Ah. Lembrei de uma frase interessante, do Nicolau Maquiavel: “O mundo da política não leva aos céus, mas sua ausência é o pior dos infernos”.

24.8.06

Falando de amor

Me perguntaram porque não falo de amor em meu blog extemporâneo.

Talvez a razão seja que o amor, mesmo o eterno, é sempre algo fugaz e efêmero, o que o tornaria assunto do outro blog.

Mas mais do que isso, tenho tido tantas coisas em que pensar ultimamente que esqueci de pensar a respeito do amor. Esqueci, inclusive, de amar. (Com exceção dos meus livros e da cocada de abacaxi que trouxeram aqui em casa.)

O amor é um sentimento belíssimo. Admito.

Quando tiver mais tempo amarei um pouco mais. Prometo.

Ademais, amor é sempre uma opção de algo a se fazer quando se estiver entediado.

Falarei mais a respeito. Em ambos os blogs.

21.8.06

Cause and effect


the best often die by their own hand
just to get away,
and those left behind
can never quite understand
why anybody
would ever want to
get away
from
them


Charles Bukowski

19.8.06

Conversa sobre dores e cavalo no elevador...

Passei as últimas quarenta e oito horas curtindo minha decadência física. Para acompanhar as dores de cabeça, a ânsia ininterrupta de vômito, a febre e as dores estomacais, tratei de colocar alguns pensamentos pessimistas na cabeça e mais um pouco de Pink Floyd na cabeceira da cama. Para completar o quadro animador, é sábado à tarde e estou só.

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O cavalo entra no elevador e eu não acredito que ele poderia caber em tão apertado recinto. Mas o maldito tinha seus truques: transformou-se em uma batida tábua de passar roupa e escorou-se num canto. Tratei de alisar suas costas tabuadas. E saltei do elevador em direção à minha casa pensando que algo estranho havia acontecido.

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Talvez a existência seja dura demais. A vida devia vir em gotas. E de éter.

11.8.06

Por que o sapo não lava o pé?

Platão: O sapo que vemos é nada além da corruptela do sapo ideal, que a alma conheceu antes da Queda. O sapo ideal lava seus pés eternos com esponjas imutáveis, num mundo sem movimento. O sapo imperfeito, porém, jamais lava os pés.
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Aristóteles: O [sapo] lava de acordo com sua natureza! Se imitasse, estaria fazendo arte. Como [a arte] é digna somente do homem, é forçoso reconhecer que o sapo lava segundo sua natureza de sapo, passando da potência ao ato. O sapo que não lava o pé é o ser que não consegue realizar [essa] transição da potência ao ato.
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Diógenes, o Cínico: Foda-se o sapo, eu só quero tomar meu sol.
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Parmênides de Eléia: Como poderia o sapo lavar os pés, ó deuses, se o movimento não existe?
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Heráclito de Éfeso: Quando o sapo lava o pé, nem ele nem o pé são mais os mesmos, pois ambos se modificam na lavagem, devido à impermanência das coisas.
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Epicuro: O sapo deve alcançar o prazer, que é o Bem supremo, mas sem excessos. Que lave ou não o pé, decida-se de acordo com a circunstância. O vital é que mantenha a serenidade de espírito e fuja da dor.
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Estóicos: O sapo deve lavar seu pé segundo as estações do ano. No inverno, mantenha-o sujo, que é de acordo com a natureza. No verão, lave-o delicadamente à beira das fontes, mas sem exageros. E que pare de comer tantas moscas, a comida só serve para o sustento do corpo.
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Descartes:
Nada distinguo na lavagem do pé senão figura, movimento e extensão. O sapo é nada mais que um autômato, um mecanismo. Deve lavar seus pés para promover a autoconservação, como um relógio precisa de corda.
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Locke: Em primeiro lugar, faz-se mister refutar a tese de Filmer sobre a lavagem bíblica dos pés. Se fosse assim, eu próprio seria obrigado a lavar meus pés na lagoa, o que, sustento, não é o caso. Cada súdito contrata com o Soberano para proteger sua propriedade, e entendo contido nesse ideal o conceito de liberdade. Se o sapo não quer lavar o pé, o Soberano não pode obrigá-lo, tampouco recriminá-lo pelo chulé. E, ainda afirmo: caso o Soberano queira, incorrendo em erro, obrigá-lo, o sapo possuirá legítimo direito de resistência contra esta reconhecida injustiça e opressão.
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Kant: O sapo age moralmente, pois, ao deixar de lavar seu pé, nada faz além de que atuar segundo sua lei moral universal apriorística, que prescreve atitudes consoantes com o que o sujeito cognoscente possa querer que se torne uma ação universal.
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Hegel: Podemos observar na lavagem do pé a manifestação da Dialética. Observando a História, constatamos uma evolução gradativa da ignorância absoluta do sapo – em relação à higiene – para uma preocupação maior em relação a esta. Ao longo da evolução do Espírito da História, vemos os sapos se aproximando cada vez mais das lagoas, cada vez mais comprando esponjas e sabões. O que falta agora é, tão somente, lavar o pé, coisa que, quando concluída, representará o fim da História e o ápice do progresso.
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Marx: A lavagem do pé, enquanto atividade vital do anfíbio, encontra-se alterada no panorama capitalista. O sapo, obviamente um proletário, tendo que vender sua força de trabalho para um sistema de produção baseado na detenção da propriedade privada pelas classes dominantes, gasta em atividade produtiva o tempo que deveria ter para si próprio. Em conseqüência, a miséria domina os campos, e o sapo não tem acesso à própria lagoa, que em tempos imemoriais fazia parte do sistema comum de produção.
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Engels: Isso mesmo.
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Kierkegaard: O sapo lavando o pé ou não, o que importa é a existência.
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Comte: O sapo deve lavar o pé, posto que a higiene é imprescindível. A lavagem do pé deve ser submetida a procedimentos científicos universal e atemporalmente válidos. Só assim poder-se-á obter um conhecimento verdadeiro a respeito.
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Schopenhauer: O sapo cujo pé vejo lavar é nada mais que uma representação, um fenômeno, oriundo da ilusão fundamental que é o meu princípio de razão. A Vontade, que o velho e grande filósofo de Königsberg chamou de Coisa-em si, e que Platão localizava no mundo das idéias, essa força cega que está por trás de qualquer fenômeno, jamais poderá ser capturada por nós, seres individuados, através do princípio da razão, conforme já demonstrado por mim em uma série de trabalhos, entre os quais o que considero o maior livro de filosofia já escrito no passado, no presente e no futuro: O mundo como vontade e representação.
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Nietzsche: Um espírito astucioso e camuflado, um gosto anfíbio pela dissimulação - herança de povos mediterrâneos, certamente - uma incisividade de espírito ainda não encontrada nas mais ermas redondezas de quaisquer lagoas do mundo dito civilizado. Um animal que, livrando-se de qualquer metafísica, e que, aprimorando seu instinto de realidade, com a dolcezza audaciosa já perdida pelo europeu moderno, nega o ato supremo, o ato cuja negação configura a mais nítida – e difícil – fronteira entre o Sapo e aquele que está por vir, o Além- do-Sapo: a lavagem do pé.
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Freud: Um superego exacerbado pode ser a causa da falta de higiene do sapo. Quando analisava o caso de Dora, há vinte anos, pude perceber alguns dos traços deste problema. De fato, em meus numerosos estudos posteriores, pude constatar que a aversão pela limpeza, do mesmo modo que a obsessão por ela, podem constituir-se num desejo de autopunição. A causa disso encontra-se, sem dúvida, na construção do superego a partir das figuras perdidas dos pais, que antes representavam a fonte de todo conteúdo moral do girino.
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Weber: A conduta do sapo só poderá ser compreendida em termos de ação social racional orientada por valores. A crescente racionalização e o desencantamento do mundo provocaram, no pensamento ocidental, uma preocupação excessiva na orientação racional com relação a fins. Eis que, portanto, parece absurdo à maior parte das pessoas o sapo não lavar o pé. Entretanto, é fundamental que seja compreendido que, se o sapo não lava o pé, é porque tal atitude encontra-se perfeitamente coerente com seu sistema valorativo – a vida na lagoa.
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Jung:
O mito do sapo do deserto, presente no imaginário semita, vem a calhar para a compreensão do fenômeno. O inconsciente coletivo do sapo, em outras épocas desenvolvido, guardou em sua composição mais íntima a idéia da seca, da privação, da necessidade. Por isso, mesmo quando colocado frente a uma lagoa, em época de abundância, o sapo não lava o pé.
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Foucault: Em primeiro lugar, creio que deveríamos começar a análise do poder a partir de suas extremidades menos visíveis, a partir dos discursos médicos de saúde, por exemplo. Por que deveria o sapo lavar o pé? Se analisarmos os hábitos higiênicos e sanitários da Europa no século XII, veremos que os sapos possuíam uma menor preocupação em relação à higiene do pé – bem como de outras áreas do corpo. Somente com a preocupação burguesa em relação às disciplinas – domesticação do corpo do indivíduo, sem a qual o sistema capitalista jamais seria possível – é que surge a preocupação com a lavagem do pé. Portanto, temos o discurso da lavagem do pé como sinal sintomático da sociedade disciplinar.
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Bobbio: existem três tipos de teoria sobre o sapo não lavar o pé. O primeiro tipo aceita a não-lavagem do pé como natural, nada existindo a reprovar nesse ato. O segundo tipo acredita que ela seja moral ou axiologicamente errada. A terceira espécie limita-se a descrever o fenômeno, procurando uma certa neutralidade.
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Olavo de Carvalho: O sapo não lava o pé. Não lava porque não quer. Ele mora lá na lagoa, não lava o pé porque não quer e ainda culpa o sistema, quando a culpa é da PREGUIÇA. Este tipo de atitude é que infesta o Brasil e o Mundo, um tipo de atitude oriundo de uma complexa conspiração moscovita contra a livre-iniciativa e os valores humanos da educação e da higiene!



(TEXTO NÃO-MEU)

10.8.06

Nietzsche está morto...

Vejam um grande vídeo.

O rapaz, a desgraça e o belo

O rapaz sai do prédio do consultório médico com a certeza de que está tão doente quanto a humanidade inteira. A decadência física do recinto e das redondezas, que chega a lembrar um cenário de guerra, apenas comprova o câncer que domina a sociedade civilizada! Ele caminha, cabisbaixo e taciturno, pensando na injustiça que parece ser inerente à existência. Imagens em preto e branco lhe vêm à cabeça, alternando com seu caminhar pesado: garotos de rua em frente ao shopping Iguatemi; Justiça Federal opulenta e favela no CAB; mendigo em frente à majestosa Igreja Universal; presídio em rebelião; hospital geral infestado de semi-mortos; ônibus lotado no rush; outras tantas e tão inefáveis imagens em flash inconsciente que aqui não poderiam ser descritas.

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Em sua caminhada em direção ao nada – que poderia ser rumo ao precipício, sem que isso fizesse diferença alguma – ele encontrou um objeto jogado ao chão. Na ânsia de ver do que se tratava e esperançoso de que a sorte lhe estivesse sorrindo, ele apanha o embrulho velho. Desenrola apressadamente e resfolega: era apenas um livro velho e idiota!, pensou. Joga-o com gosto ao chão. O livro cai aberto. Com remorsos de sua atitude agressiva, apanha o livro para deixá-lo no mesmo local no qual o encontrou, pensando que o dono poderia vir procurá-lo. Meio sem querer, vê que a página aberta traz um poema, ao qual lhe dirige um breve olhar e lê:

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Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

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Perante a beleza dos versos, estagna. Lê mais um pouco:

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O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

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Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

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Sente-se inacreditavelmente bem e debruça-se sobre o livro:

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Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

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A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

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Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

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Acaba por pensar que o achado era, enfim, um bom presente. Reconfortado, busca o ar fresco da orla marítima e vê, para além das desgraças da humanidade, um mundo cheio de vida e cores: um pássaro que passa por sobre a cabeça; surfista gozando a possível liberdade ao mar; uma moça bonita que passa e lhe dá atenção; estudantes que brincam uns com os outros sem preocupações outras que não o divertir-se e esquivar-se das jocosidades dos demais... Imagens que o levam a crer que ainda há beleza no cotidiano e esperança no horizonte.

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Sim, ele está doente e o mundo inteiro também. Mas há sempre um pássaro a passar altivo por sobre a cabeça.

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PS. Poema de Carlos Drummond de Andrade, chamado Consolo na praia.

9.8.06

Sociedade de Massa

O que explicaria o fenômeno da sociedade de massa, se entendermos por tal uma configuração social que sublima os indivíduos em um bloco inefável e amorfo colonizado pelo fetichismo extremo do mercado, da mercadoria e do consumo? Como alguém pode pertencer à essa massa?

Talvez a resposta esteja em um índice a que chamarei nível de demanda explicativa. Se os indivíduos são socializados para se identificarem com o sistema do consumismo passivo, suas atividades cotidianas mais banais – no trabalho (produção) e no tempo livre (consumo) – passam a ser seu universo de significado. Nada além dessa díade fará sentido. Tudo o mais será considerado supérfluo. Conhecimento crítico, arte, cultura, poesia, tudo soará como retrógrado e anacrônico – algo que foi mas não é mais. O que interessa é trabalhar no mundo da produção e depois consumir o que outros produziram em seus mundos da produção. O nível de demanda explicativa da realidade é reduzido a um grau baixíssimo e tudo o que aparentar ser “complexo” é transportado para o além-do-mundo, para o sobrenatural, o que explica a explosão das religiões de mercado. O ser-da-massa vive seu cotidiano adestrado de trabalho-consumo e quando sua natureza humana lhe leva à questionar ele remete tudo ao divino. Pronto, a realidade, para o ser-da-massa, está, assim, esgotada. Tudo está como é e como tem que ser. Vamos ao shopping center.

Numa sociedade que um dia almejou a emancipação, um pouco de luz pode estar no aumento do índice de demanda explicativa da realidade. Para tanto, faz-se mister seres críticos que não se isolem da massa e, num esforço descomunal, engaje-se no projeto de desnaturalizar o natural. Nada de oferecer respostas, mas questões.