28.10.06

insustentável leveza insuficiente

Sim, já falaram na insustentável leveza, mas talvez tenham deixado de lado a insuficiência. De fato, cá estou eu: insuficiente. Não caibo em mim e transbordo pelas beiradas. Contamino e adoeço. Os anti-corpos vão pelo lado de fora. E quem, mais do que eu, é um anti-corpo? Do lado de dentro apenas desejo. Mas desejo de não-realização. Tenho plena consciência de que se tivesse meus desejos realizados seria extremamente infeliz. Não! Quero apenas a busca... Quero apenas a aposta. E se for pra escolher, prefiro perder. No entanto, em zonas de não-consciência, eu comemoro vitórias. E ela segue o rumo dela. Eu sigo o meu, com outras. Tudo isso falo comigo mesmo e me escondo atrás de meu ser plasmado. A todos os outros: “Oi, tudo bem? Como está? Eu tou bem.” Loucura momentânea. Estou bem. Amanhã estarei melhor. E... E... E o espírito de Deus pairava sobre a face das águas.

12.10.06

Da dignidade humana


À Tássia Camila


Depois de uma cansativa aula, dirigia-me com andar pesado por sobre as ruas repletas de pessoas. A movimentação era-me completamente indiferente e o único pensamento consciente que me perpassava era de que deveria chegar logo à casa de minha tia. Foi, então, que a visão de um senhor de classe média (alta, talvez) me chamou a atenção. Ele alimentava os pombos ostentando um doce olhar e uma alma leve. Aproximei-me curiosa. Demonstrando sua amabilidade também para com os seres humanos ele puxou assunto comigo: “a natureza é perfeita”. Disse adorar o arrulhar dos pombos e que adorava também os peixes, principalmente os de água salgada, que têm a liberdade de navegar pelos mares. Deleitava-me com a conversa. Não percebi terem se passado dez minutos. A praça continuava sua vida normal, com seus vendedores de pipoca e picolé, crianças a brincar, adultos apressados se dirigindo de um ponto qualquer a outro, também, qualquer – e que só não faziam o trajeto em linha reta porque árvores incômodas lhes atravessavam o caminho - e um varredor trabalhando para a limpeza do que outros novamente sujarão. Daí apareceu outra figura citadina – bastante incômoda à sensibilidade burguesa: um mendigo. Ele se aproximou do senhor dos pombos e pediu um cadinho do milho para si – peripécias da fome. O tão amável senhor mudou tão imediatamente a fisionomia a ponto de me surpreender. De cara emburrada tirou um punhado de milho e doou sem olhar o traste inumano que ousava ter fome e incomodar aqueles que não a sentem. Como que pressentindo um grave perigo ou, talvez, devido ao imenso asco, o senhor dos pombos me puxou para longe a fim de me colocar em uma segura distância daquilo que a nossa sociedade civilizada repugna. Ele nem sequer se virou uma vez mais para ver o mendigo. Mas eu, como sempre curiosa e meio atônita, o fiz. Surpreendi-me com a visão do mendigo sentado em um banco da praça, sereno, a alimentar os pombos.

4.10.06

Breve conto sob influência de Dostoiévski

Um dia qualquer. Ele, que não lembra de seus sonhos em sono, acorda com todos os sonhos do mundo, como diz o Pessoa. Sente-se malditamente bem ao pôr os pés no chão, após alguns momentos silentes sentado na cama, com os cabelos desgrenhados e os olhos semi-cerrados. Pensava no que faria durante o dia, pois tinha a mania de planejar as suas ações cotidianas (aquelas que ele faria mesmo sem planejar, como um autômato que talvez fosse). Enumerava mentalmente: urinar; lavar o rosto; estralar os dedos; tomar café; sentar no sofá; ligar a tv etc. Valorizava demais as ações mais banais da vida diária e chegou a formular um sistema filosófico inconsciente para justificar seu fracasso sempre que pensava em fazer algo que desviasse do rumo da banalidade e do vazio. Como no dia em que planejou convidar uma garota para sair. Já vinha reparando nela há algum tempo e lhe chamava a atenção a inteligência aliada à beleza. Mas nunca soube como abordar uma garota: tomado por um romantismo anacrônico nunca foi capaz de entender como os rapazes de sua idade abordavam garotas de forma tão direta, descompromissada e, pior de tudo, vulgar e, ainda assim, alcançavam seu objetivo. Sua abordagem honrosa sempre lhe rendeu terríveis e dolorosos fracassos. Enquanto conversava com uma garota sobre as coisas belas da vida, um terceiro pedia o telefone e dizia sem rodeios que a telefonaria à noite para saírem juntos. A garota, após este intervalo de esquecimento dele, voltava-se para ele com um olhar compreensivo, como quem caritativamente escuta o que tem a falar, mas não consegue esconder o anseio de retirar-se dali. Mas insistia na tática, pensando consigo mesmo que um dia encontraria a garota que cairia a seus pés devido a sua forma de abordá-la. E esta, pensava, será a verdadeira merecedora de toda a minha paixão. Julgava que desta vez não haveria erro. A garota em questão seria conquistada. Acordou com esse intuito e levaria tudo às últimas conseqüências. Passou o dia a pensar em cada frase, em cada palavra, em cada gesto a dirigir a ela. À noite, no último dia de aula, sentou-se ao lado dela. Conversaram bastante sobre diversos assuntos sobre os quais a manada nunca compreenderia. E, de fato, rostos perturbados e perplexos encaravam os dois a conversar, como a questionar como duas pessoas poderiam passar a aula inteira sem prestar a mínima atenção ao professor e, ainda por cima, para conversar sobre assuntos como aqueles. Mas nada atrapalhava a fluência do colóquio. A empatia era total. Era chegada a hora decisiva, o momento pelo qual esperou ansiosamente, o instante de pôr em prática aquilo que havia minuciosamente treinado. Mas um calafrio o perpassou subitamente. Pensou ter encontrado a garota dos sonhos e temeu jogar tudo por água abaixo em uma cartada arriscada e, quem sabe, precipitada. Resignou-se e, por um momento, o silêncio pairou sobre os dois. Ela puxou algum assunto. Ele, atordoado, pediu para que ela repetisse, pois não fora capaz sequer de escutá-la. A conversa voltou a fluir por uns instantes. Alguns minutos e ambos se despediram, cada qual tomando uma direção. Hoje se vêem esporadicamente e se tratam de maneira fria. Mas naquela noite ela não conseguiu dormir antes da alta madrugada, pois seu pensamento estava fixo no rapaz doce e poético que, no entanto, não tinha interesse nela. Lamentou-se pelo seu azar e convenceu-se de que seu destino era arranjar-se com algum rapaz da manada, grosseiro e maquinal. Ele, por sua vez, pensou ter feito a coisa certa ao nada fazer, pois havia se convencido de que seu destino era a solidão e que seu sistema filosófico inconsciente estava correto: tudo o que se distancia da banalidade e do vazio estão irremediavelmente fadados ao fracasso.