9.4.06

Me desculpa, eu existo!

Estávamos eu e Pedro no bar, tomando cerveja sábado à noite e conversando sobre Guy Debord, Karl Marx, Nietzsche e Schopenhauer, enquanto a nossa volta, Freud explica, todos "enchiam a cara" como forma de facilitar possíveis aproximações de cunho sexual (afinal, é sábado à noite). Percebíamos, eu e Pedro, o quanto éramos dissonantes em relação ao resto das pessoas no bar. Mas esta fantasia de distanciamento social durou pouco. De repente o materialismo histórico venceu! Achávamos-nos dissonantes por mera divergência das outras pessoas no plano das idéias, mas a ilusão cessou quando a verdadeira dissonância apareceu na nossa frente...

Uma deficiente auditiva de baixa renda perturbou nossas divagações filosófico-políticas... Mas o mais assustador é que ela não disse uma única palavra (talvez porque fosse muda, mas acredito que mesmo podendo nada diria), deixou uma bugiganga sobre a mesa com o intuito de vendê-la e mais um desgastado cartão de apresentação. Nada demais, visto ser esta uma cena com a qual nossos sentidos já estão tão acostumados de perceber cotidianamente que nosso mais profundo consciente, sub-consciente e até inconsciente cauterizaram e não mais geram qualquer pensamento a respeito da situação. A questão, no entanto (olhem o cartão atenciosamente), é que a pessoa já pedia desculpas antes de qualquer coisa. Imaginem uma existência tão absolutamente miserável que um ser sinta-se impelido a pedir desculpas por estar vivo. Ela sabia que não nos atrapalhava em nada, mas seria melhor se não existisse. Sabia (e sabe) que é completamente dispensável no mundo e que morrendo, ninguém dará pela falta. Imaginem seu cotidiano: acorda e pensa "lá vou eu atrapalhar os outros de novo". A tristeza é a regra em sua vida e ainda pede desculpas por isso! "Me desculpa, eu sou surdo" "Me desculpa, eu nasci assim, destinado a sofrer todos os tipos de estigmas sociais" "Me desculpa, mas preciso comer" "Me desculpa, me desculpa, me desculpa"...
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Mas o pior de tudo é que não adianta implorar: a sociedade não desculpa!
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...E o pequeno Mickey alegre disfarça a exploração e o sofrimento...

Um comentário:

Anônimo disse...

eu não sou surdo.
do alto da minha posição de ouvinte, entretanto, eu a perdôo.

vá e não peque mais.

não vá ficar cega também, ouviu?