10.8.06

O rapaz, a desgraça e o belo

O rapaz sai do prédio do consultório médico com a certeza de que está tão doente quanto a humanidade inteira. A decadência física do recinto e das redondezas, que chega a lembrar um cenário de guerra, apenas comprova o câncer que domina a sociedade civilizada! Ele caminha, cabisbaixo e taciturno, pensando na injustiça que parece ser inerente à existência. Imagens em preto e branco lhe vêm à cabeça, alternando com seu caminhar pesado: garotos de rua em frente ao shopping Iguatemi; Justiça Federal opulenta e favela no CAB; mendigo em frente à majestosa Igreja Universal; presídio em rebelião; hospital geral infestado de semi-mortos; ônibus lotado no rush; outras tantas e tão inefáveis imagens em flash inconsciente que aqui não poderiam ser descritas.

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Em sua caminhada em direção ao nada – que poderia ser rumo ao precipício, sem que isso fizesse diferença alguma – ele encontrou um objeto jogado ao chão. Na ânsia de ver do que se tratava e esperançoso de que a sorte lhe estivesse sorrindo, ele apanha o embrulho velho. Desenrola apressadamente e resfolega: era apenas um livro velho e idiota!, pensou. Joga-o com gosto ao chão. O livro cai aberto. Com remorsos de sua atitude agressiva, apanha o livro para deixá-lo no mesmo local no qual o encontrou, pensando que o dono poderia vir procurá-lo. Meio sem querer, vê que a página aberta traz um poema, ao qual lhe dirige um breve olhar e lê:

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Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

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Perante a beleza dos versos, estagna. Lê mais um pouco:

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O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

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Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

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Sente-se inacreditavelmente bem e debruça-se sobre o livro:

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Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

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A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

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Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

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Acaba por pensar que o achado era, enfim, um bom presente. Reconfortado, busca o ar fresco da orla marítima e vê, para além das desgraças da humanidade, um mundo cheio de vida e cores: um pássaro que passa por sobre a cabeça; surfista gozando a possível liberdade ao mar; uma moça bonita que passa e lhe dá atenção; estudantes que brincam uns com os outros sem preocupações outras que não o divertir-se e esquivar-se das jocosidades dos demais... Imagens que o levam a crer que ainda há beleza no cotidiano e esperança no horizonte.

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Sim, ele está doente e o mundo inteiro também. Mas há sempre um pássaro a passar altivo por sobre a cabeça.

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PS. Poema de Carlos Drummond de Andrade, chamado Consolo na praia.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ai, vou chorar.