3.9.06

Da doença social

Estudando Foucault encontramos uma modernidade na qual o Sujeito emergiu. As cadeias do Ancién Régime foram quebradas e o indivíduo pôde, enfim, viver o seu Ser verdadeiro. É verdade que este autor também tratou longamente das novas formas que a modernidade encontrou para efetivar o controle social, mas este seria um controle diferenciado, onde o indivíduo mantém parte de sua autonomia. Baboseiras como essa também foram compartilhadas por pessoas de bem, como o Sartre. Para este, a liberdade de escolha do indivíduo seria total. Todo o Ser seria responsabilidade do próprio Ser, pouco importando os constrangimentos externos à ação, pois, para Sartre, “não importa o que fazem de mim, mas o que eu faço do que fizeram de mim”.

Lendo Baudrillard, no entanto, vemos o outro lado da moeda. Em seu livro Esquecer Foucault este autor desconstrói a ilusão da autonomia e do surgimento do indivíduo, afirmando que a modernidade não foi marcada pelo surgimento deste, mas apenas pelo surgimento da ilusão deste. A autonomia individual propalada pelos grandes teóricos clássicos do liberalismo seria apenas parte da legitimação ideológica de uma configuração social marcada pela dominação da maioria pela minoria e pela homogeneidade da experiência existencial. As diversas formas possíveis de levar a própria vida não decorrem da criação e da autenticidade do ser e estar no mundo, mas apenas da liberdade de escolher dentre as formas disponíveis de experiência. Mais ou menos similar ao que acontece em um supermercado: os carrinhos das diferentes pessoas estão cheios de diferentes mercadorias, mas estas, por sua vez, foram disponibilizadas antecipadamente. Como são diversas as possibilidades combinatórias dentre as mercadorias possíveis, cada carrinho terá uma composição diferente. A isso chamamos autenticidade individual! No plano social, as combinações são inúmeras e podemos sobrepor diversas identidades toleradas pelo sistema para conformarmos a nossa individualidade. Exemplo: estudar administração na UCSal; ouvir música clássica; ler Dostoievski, Paulo Coelho e revista Contigo; beber e fumar; ser católico não-praticante, mas freqüentar o espiritismo; ir para a Choppada de Medicina da UFBA e Tom Zé na Concha etc. Outro exemplo: estudar administração na UCSal; ouvir axé e MPB; ler Paulo Coelho e revista Contigo; beber; ser católico praticante; ir para a Choppada de Medicina da UFBA e detestar Tom Zé. Tudo dentro dos limites dos modelos de Ser oferecidos pelo mercado da existência. Algumas vezes pode ocorrer das individualidades conformadas se tornarem demasiado distantes uma da outra e isso acarretar na impossibilidade do diálogo. Por exemplo, uma pessoa da tribo punk e outra da tribo do arrocha. Mas esta diferenciação brutal é tão brutal quanto um carrinho de supermercado com laranjas e bananas e outro com sabão em pó e água sanitária. Como se diz, não se pode comparar cachorro com banana.

Assim, vamos glorificando o capitalismo e a modernidade por nos permitir sermos nós mesmos (sic). E o que eram as pessoas sob o Feudalismo? As pessoas sempre são elas mesmas, respeitados os limites da estrutura social da época. Contudo, apesar da visão catastrofista apresentada no parágrafo anterior, acredito que as configurações sociais podem ser modificadas historicamente, como efetivamente o são, sempre de maneira inconsciente e não-linear. Também acredito que o Sujeito exista, com seus sonhos e sofrimentos. Então, este sujeito colonizado (como todo ser humano dentro de uma ordem social), diante da possibilidade da mudança social, pode ser um dos diversos agentes de transformação do seu círculo existencial e até mesmo da estrutura social. A transformação, contudo, nunca será a objetivação de sua vontade, mas a síntese oriunda das lutas travadas em prol dos mais variados projetos sócio-históricos e existenciais. Por não ser linear, a mudança também pode ser para uma configuração ainda mais opressora e castrante. De fato, ao longo do capitalismo, é possível verificarmos diversos momentos em que o nível de liberdade foi mais estendido. Hoje, contudo, verificamos uma subordinação de todas as lógicas sociais à lógica do mercado. Se o movimento histórico continuar nesta direção, dentro em breve poderemos nos referir à civilização ocidental como sociedade simples, em vista de seu alto nível de homogeneidade (onde a individualidade se restringe ao tipo de consumo adotado) e consciência coletiva (consumista). Em outros tempos (olha a nostalgia), pelo menos os campos da arte, da educação e produção de sentimentos e pulsões ainda não estavam colonizados pelo mercado. E se o indivíduo nunca será livre como pensava Sartre, pelo menos havia certos espaços restritos para o exercício da liberdade vigiada. Hoje há o consumo espetacular. É esta a doença social: caminhamos alegremente à homogeneização mais brutal acreditando estarmos realizando um projeto individual, quando estamos apenas recusando a possibilidade de executarmos projetos diferentes dentro da mesma sociedade, uma vez que o único projeto hoje é o do consumo. Talvez a liberdade sartreana tenha escolhido a não-liberdade. Resta-nos viver a doença e esperar que a cura algum dia esteja à venda nas farmácias...

Um comentário:

Anônimo disse...

Sinceramente, não tenho que o acrescentar ou discordar do seu texto. Belíssima e aterradora reflexão! Pena que nem todos - e aí falo do texto que escrevi no outro blog - percebem que a homogeneização da sociedade, através do consumo, se dá em todas as esferas da vida social. Desde o que se acha alternativo (no caso descrito), até o axezeiro, fazem parte da mesma estrutura social consumista e, portanto, são farinha do mesmo saco. Mas claro, uns grãos são mais torrados, outros mais finos e assim por diante. Todavia, a negação do outro e a auto-identificação como superior não contribuem para uma visão tão verossímil da realidade social, como vc teve nesse post. Parabéns! Grande abraço!