O bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos
Não examinava nem cheirava
Engolia com voracidade
Não era um gato
Não era um rato
O estruturalismo, principalmente a partir de Lévi-Strauss, nos blindou para estes excessos, nos mostrando que o homem é, eminentemente, um corpo físico que executa as funções do corpo social no qual está inserido (levando seus argumentos às últimas consequências, mas sem impossibilitar a criatividade fenomenológica). E isso é válido tanto para as macro-sociedades quanto para o posicionamento de status dos indivíduos em determinada sociedade. Assim, um mendigo é um mendigo e não a quintessência transcendental. A sociedade reservou-lhe este papel e ele não tem meio algum de libertar-se desta situação malfazeja (pelo menos não de forma autônoma, através de uma hipotética tomada de consciência; daí a assistência e a caridade). Sua razão (Razão, se preferirem) serve apenas para permiti-lo executar bem sua função de mendigo e não para possibilitá-lo enxergar o Belo ou lutar pela Liberdade (Parsons sabia do que falava, mas reservo-me a crítica à sua defesa moral do funcionalismo). Não que ele não tenha desejos e sonhos, mas estes serão de um tipo diverso do que os cientistas sociais e filósofos sempre pensaram, a partir de sua noção da unicidade da humanidade. Lévi-Strauss nos mostra, sim, que a humanidade é uma só, mas o próprio acrescenta que essa unicidade e igualdade são uma unicidade e igualdade originais, que possibilitam, contudo, fins completamente diferentes (em sentido diferente do advogado por Locke). O mendigo não é rei, efetivamente.
Contudo, a ilusão racionalista-iluminista sustentou um ideal de elevação, que incitava a humanidade à luta em busca do Belo e do Bom. Tal busca engendrou uma sociedade onde os homens-bicho continuavam a existir, mas o Estado de Bem Estar Social, o socialismo revolucionário, as lutas sócio-culturais dos jovens e das mulheres e outras forças sociais pareciam mostrar que a efetivação da ilusão era questão de tempo. A descoberta de que a ilusão era verdadeiramente uma ilusão afetou ânimos subjetivos e objetivos e tudo se inverteu. O reconhecimento de que o Homem é apenas homem e, não raro, homem-bicho, levou este último a ser o novo ideal a ser buscado. Daí a difusão deste novo modelo em suas diversas variáveis: o homem-bicho que vê um produto na televisão e sente ânsia consumista; o homem-bicho político generalizadamente corrupto; o homem-bicho trabalhador de renda baixa fã de Hebe Camargo; o homem-bicho intelectual mistificador; o homem-bicho quero apenas sexo, cerveja e futebol; o homem bicho detesto ler e vou me formar sem nunca ter lido um livro inteiro; o homem-bicho, o homem-bicho, o homem-bicho... São centenas, milhares, milhões de tipos de homens-bicho. E talvez cada ser humano vivo (ou talvez fosse mais pertinente usar aqui o termo não-vivo de Guy Debord, fazendo referência ao vivo objetificado, pouco diferenciado do morto) seja um tipo original de homem-bicho. É o que Baudrillard chama de originalidade da vacuidade absoluta.
As críticas estrutural e pós-moderna nos livraram da ilusão racional-iluminista, mas ao não saber aproveitar o que de bom havia, nos deixaram em um deserto do Ser, onde o homem-bicho vagueia catando comida entre os detritos.
(Nota de encerramento: obviamente não estou creditando a desertificação do existente à duas teorias sociais, o que acabaria por ser um tipo de idealismo neo-hegeliano que defende a racionalidade do Real; apenas demonstro um aspecto teórico dentre as diversas dimensões que, somadas, podem fornecer uma imagem deste Real, através de uma aproximação ideal-típica.)
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